sábado, 15 de março de 2014

O MAIOR AFRODISÍACO

Crónica de Anselmo Borges 




1 Soube que era chamado por Deus a uma missão essencial para o mundo. Para decidir, foi, como fazem todos os que na história são grandes, meditar. E então Jesus foi tentado. Três tentações, todas à volta do mesmo: o poder. O que ele tinha de decidir era entre um Messias do poder enquanto dominação e um Messias do serviço e da criação.
O diabo colocou-o sobre o pináculo do templo em Jerusalém e disse-lhe: "Se és Filho de Deus, deita-te abaixo, pois os anjos tomar-te-ão nas mãos." Esta é a tentação do domínio pelo espectáculo do poder.
Pela sua própria dinâmica, o poder quer ser total. Por isso, o demónio levou-o a um monte muito alto, mostrando-lhe todos os reinos do mundo e a sua magnificência e disse-lhe: "Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares." O que a gente faz, quantas prostrações, para poder dominar! Dominar todos os reinos do mundo.
Se há fascínio, é o do poder. A volúpia do poder! Porque subjugar a vontade de outros ao domínio próprio surge como redenção e bênção. Disse quem sabe, Henry Kissinger: o poder é "o maior afrodisíaco." E, no limite, o poder total. Porque, no fundo, há a ilusão de que, com o poder total, se teria o poder de todos os poderes: matar o poder da morte. Ser imortal.
Daí, por princípio, Deus ser concebido e apresentado como todo--poderoso, omnipotente. Como se a omnipotência fosse a característica mais própria de Deus. A tentação primeira, logo no início, foi a da serpente: "Sereis como Deus." A omnipotência seria agora nossa.


2 Jesus, porém, fez uma experiência avassaladoramente diferente de Deus: Deus não é omnipotente enquanto poder de dominação, Deus é omnipotente enquanto Força infinita de amar e de criar. Por isso, disse: "Eu não vim ao mundo para ser servido, mas para servir e dar a vida por todos." E amou, amou até ao fim, por palavras e obras, criando e recriando a vida de todos os desamparados, feridos e perdidos, que somos todos. E amou até à morte e morte de cruz, para dar testemunho da verdade de Deus como Força infinita de criar e de amar. Por isso, morreu como blasfemo, contra o Deus da dominação.
A revolução de Jesus consiste na revolução operada na imagem de Deus. Deus é outro que não poder de dominação. Quem cria e ama é que é como Deus. Afinal, a história não pertence aos dominadores, mas aos criadores.

3 A vida é potência, força que se afirma e expande. Mas a vida só é vida se se afirmar e tiver possibilidade de se expandir em todos. O poder como dominação é apenas de alguns e para alguns, excluindo sempre a maior parte, os dominados. O poder como serviço, força de criar e amar, não exclui ninguém, pelo contrário, inclui a todos e não diminui mas acrescenta.
Quem quiser entender precisa de parar, para reflectir e meditar. Meditação tem a mesma raiz que medicina e moderação. Vivemos num mundo perigoso, impondo-se, pois, a moderação e a meditação como medicina que cura e, pela conversão, abre a possibilidades outras que não as da destruição.
Foi assim que esta semana o Papa Francisco pegou em si e na Cúria e foram todos para fora do Vaticano meditar, iniciando o retiro com o texto bíblico das tentações de Jesus, que são as nossas. Em ordem à conversão. Não sem antes dizer à Cúria que ela não é nem pode ser "a Corte".
Na primeira tentação, o diabo disse a Jesus para transformar as pedras em pão. Jesus disse-lhe que nem só de pão vive o homem. Há outras necessidades e é urgente perceber que a felicidade se não confunde com o consumismo sem limites e a auto-satisfação, que, dentro de um egoísmo insolidário, acabam por gerar o vazio. Isto sim: com a conversão, virão também a fome de justiça e o pão para todos. Como escreve o biblista José A. Pagola, que constata com Jesus que não basta o pão, "o ser humano precisa também de cultivar o espírito, conhecer o amor e a amizade, desenvolver a solidariedade com os que sofrem, escutar a sua consciência com responsabilidade, abrir-se ao Mistério último da vida com esperança".

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