Anselmo Borges |
Embora sensível ao raciocínio de Vasco Pulido Valente, que, reflectindo, no "Público", sobre os caminhos que ficam para o Papa Francisco, concluía: "Apesar da sua imensa popularidade, e mesmo por causa dela, Francisco acabou numa velha armadilha, em que esbraceja em vão. O inquérito não o ajudará.", não creio que, desde que superemos a análise sociopolítica e nos coloquemos na perspectiva cristã, que é a sua, Francisco tenha caído numa armadilha.
Então, qual é o maior problema de Francisco? Ele é um cristão convicto. O que o move é o Evangelho enquanto notícia felicitante da parte de Deus para todos. Assim, o seu problema é que todos se convertam realmente ao Evangelho, começando pelos cardeais, continuando nos bispos e nos padres e acabando nos católicos, que devem converter-se a cristãos.
Neste sentido, não se trata de mudar o essencial da doutrina, mas de ir ao decisivo do Evangelho. Ora, o núcleo do Evangelho são as pessoas, dignas de respeito e atenção. É, pois, preciso continuar a anunciar o ideal do matrimónio cristão, mas, depois, atender às pessoas, às suas necessidades e feridas. Para isso, Francisco conta com a mediação da sensibilidade pastoral dos bispos e dos padres e dos cristãos em geral, que asseguram no concreto a aplicação do ideal.
Por outro lado, não se deve esquecer que Francisco tem uma dupla origem. Ele é ao mesmo tempo "franciscano", e, assim, humilde e próximo das pessoas, e jesuíta, portanto, com toda uma formação de procura da eficácia. Ele crê na "Igreja Povo de Deus", que é também a "santa Igreja hierárquica". Por isso, sabe consultar, no quadro de uma adelfocracia (governo de irmãos), mas também sabe que, em última instância, é a ele que compete decidir, com os outros bispos e em Igreja. Neste quadro, deixei aqui na semana passada o que me parece expectável como resultado deste inquérito, passando agora a algumas perspectivas de teor mais pessoal.
É claro que a família é uma instituição essencial, indispensável, enquanto espaço de comunhão, partilha de afectos, valorização e realização pessoal e educação das crianças. A família é a célula de base da sociedade. Mas também é claro que a pastoral familiar não pode continuar a centrar-se num catálogo de proibições e pecados, na proibição dos anticonceptivos e das relações sexuais pré-matrimoniais. O próprio Francisco já preveniu que não se pode viver obcecado com o rigorismo e o legalismo; de outro modo, "mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas". É evidente que não vale tudo, mas a Igreja tem de reconhecer que tem tido enorme dificuldade em falar pela positiva das questões ligadas à família e ao sexo. O seu discurso nestas matérias tem de centrar-se na dignidade, liberdade, respeito e responsabilidade. Isto também significa que a valorização que se faz da família cristã não tem de ser acompanhada de ataques a outros tipos de realização e vivência de família.
Se o Papa reconhece que há também a tendência homossexual, pergunta-se se não se deve caminhar no sentido do reconhecimento do direito de actividade sexual no mesmo quadro de exigências dos heterossexuais. A adopção é diferente, pois o debate continua, mesmo entre especialistas. Embora Francisco, quando arcebispo de Buenos Aires, tenha aprovado que um casal gay adoptasse uma criança, o que significa, mais uma vez, a dialéctica entre os princípios e as pessoas na sua situação concreta.
Quanto à paternidade e maternidade responsáveis, é urgente perceber que a moral é autónoma, pertencendo, portanto, as decisões neste domínio às pessoas e aos casais, dentro da liberdade na responsabilidade.
No caso dos divorciados que voltam a casar, é claro que se exige celeridade nos processos de declaração de nulidade no casamento. Mas pergunta-se se não será necessário ir mais longe e, atendendo à fragilidade humana, invocar, como a Igreja cristã ortodoxa, o princípio da misericórdia, dando a possibilidade de outra oportunidade. Seja como for, não se pode pedir aos divorciados recasados que continuem no seu empenhamento na Igreja, mas impedindo-os da comunhão.
Anselmo Borges
No DN de hoje