Um livro inédito de Ângelo Ribau
Ângelo Ribau |
Na Primavera/Verão
“Pois é meu menino... Reprovaste no exame de admissão ao liceu, agora vais saber como elas te mordem. Vais aprender à tua custa, a comer o pão que o diabo amassou!” — Diz-lhe o pai.
O Toino nem sabia o que dizer. Ele que na quarta classe fora dos melhores alunos… Só ele e outro foram, no exame, aprovados com distinção, e agora, passado um ano (esteve um ano sem fazer a admissão ao liceu a conselho do professor, por ser muito novo), chumbou!
A ordem em casa era: chumbou, o estudo acabou…
Foi o que aconteceu ao Toino. Agora, com o pai marnoto, já sabia o que o esperava: marinha. E nós, os filhos da casa sabíamos muito bem o que era o trabalho nas marinhas de sal pois durante as férias grandes, sempre éramos “convidados” a ir dar uma ajuda…
Os que ficavam em casa a ajudar a mãe, que agricultava as suas terras, também tinham os seus trabalhos. Ainda agora o Toino se recorda que não eram autorizados a ir nadar no esteiro pequeno, sem primeiro desmantarem dois cabazes de espigas de milho…
Na marinha, o trabalho de rêr (juntar o sal dos meios para o tabuleiro), de encher as canastras, de as transportar para o monte no malhadal (que ficava num sítio alto, para que as águas da ria não o atingissem), sempre a correr, era muito pesado até para um homem. Para nós, malta nova, era um suplício! E as férias eram grandes…
Agora o trabalho do Toino seria o de moço do próprio pai, andando sempre com ele em todas as suas labutas. De verão era a marinha, no Outono a apanha do estrume que seria utilizado no Inverno para as camas do gado e no Inverno era a apanha do moliço, que serviria para adubar as terras, que depois seriam semeadas na primavera. O Toino não sabia fazer nada disto. Nunca o tinha feito.
— Tu aprendes — diz-lhe o pai — que eu ensino-te. Aprendes e depressa. Se não “é porrada e água à jarra”!
Eu sabia o significado daquela frase, o que não me deixava nada descansado! O meu corpo é que iria pagar, como se tivesse sido eu o culpado no chumbo na admissão ao liceu.
Havia ainda outra coisa terrível. Quando vínhamos da marinha, tínhamos de pegar nos bois, pô-los ao carro e ir com eles buscar carradas de milho às terras, para no dia seguinte ser desmantado. Não havia sapatos para os pés, não havia qualquer proteção.
Os troços do milho eram duros e feriam-nos os pés, especialmente entre os dedos. No dia seguinte, na marinha, era uma desgraça pôr os pés naquela moira tão salgada. Só quem já sentiu tais dores, pode na verdade avaliar esse sofrimento!
Tanto valia pôr “pachos” (pedaços de pano embebidos em colódio) nessas feridas como não. Ia-se à farmácia, comprava-se o colódio e antes de ir para a moira, enchiam-se os “poços” (buracos feitos na carne pelo sal e a moira) com o colódio, que se colava na carne, por algum tempo.
As canelas, que enfolavam com o bater do sal, eram protegidas com “encoiras” normalmente de borracha, e que iam do pé até ao joelho, sendo amarradas com fio.
Tudo isto, quando se estavam a tirar resultados de muitos trabalhos anteriores, tais como a preparação da marinha, a limpeza das lamas acumuladas durante o Inverno, a preparação e arranjo das barachas (separações em madeira nas partes de baixo da marinha e que nas partes de cima eram em lama e alternadas com as canejas, também em lama e que era necessário anafar) depois de abertas com um “cabeça de carneiro” para que quando viesse o calor elas não rachassem - o que daria lugar à passagem de moira de uns meios para outros, que era prejudicial, pois uns ficariam cheios de moira e outros vazios, e isso não era conveniente. E porque não era conveniente, tinha de ser evitado…
(Continua...)
OOOOOOOOOOOOOOO
NOTA: O meu bom amigo Ângelo Ribau faleceu em 11 de Agosto de 2012. Vai completar, dentro de dias, um ano de ausência física, que não espiritual. Ele continua presente entre nós.
O Ângelo gostava muito de ler e de escrever, porventura tanto como de fotografar. Desde jovem, habituou-nos às artes fotográficas, bem como nos iniciou na história da fotografia e nas técnicas de revelação e impressão dos negativos. Assisti, vezes sem conta, às suas experiências neste campo em que era sabedor.
Como amante da escrita, não parava de registar os seus gostos e saberes de experiência feitos, relatando-nos, com sensibilidade, quadros de guerra e de contactos humanos. Uma edição familiar, extensiva a amigos, dá-nos conta da guerra colonial em que participou.
Posteriormente, foi-me enviando textos alusivos à safra do sal em que acompanhou o pai. Trabalhos duros que registou no seu computador. Eu sabia disso e até cheguei a editar alguns pedaços da sua vida nos meus blogues.
A sua filha Cláudia, enviou-me um dia destes o texto completo de um livro, inédito, com autorização para eu publicar o que entendesse. E eu entendi que teria mesmo de publicar o texto todo, por partes, ao jeito de folhetim. Um dia, quem sabe, será editado em livro. O Ângelo merece, sem dúvida. Desta forma, com publicação semanal, os meus leitores e meus amigos, que do Ângelo amigos são, terão o gosto de saborear as histórias de "O Marnoto Gafanhão". É uma singela homenagem.
Fernando Martins