Uma página eloquente para ler e meditar
«O cardeal Ratzinger, futuro Papa, disse, no II Sínodo da Europa (1999), que “a Igreja fala muito de si e pouco de Jesus Cristo”. Os acontecimentos recentes recomendam um sério exame de consciência neste aspeto, tendo em conta o que se diz, se escreve, se faz e promete. Também a isso nos obriga o testemunho do Papa Francisco, que se debate numa Igreja que se fez centro, olha muito para si, mas continua poluída por excrescências históricas que ensombram a verdade de um só Senhor, o Senhor Jesus.»
António Marcelino
À medida que os anos passam, cresce em mim a preocupação sobre a renovação, sempre mais urgente, da Igreja de Cristo, na fidelidade às suas origens, hoje mais compreensíveis e acessíveis por via do Concílio Vaticano II e o testemunho vivo do Papa Francisco. É assim como que uma ideia-motor que aciona o meu agir de cristão e de bispo. Vivi anos no antes e no imediato após Concílio. O decorrer da sua realização, na perspetiva da renovação da Igreja, foi um tempo de esperança e de incontido entusiasmo. Vem de longe este projeto em que sempre me empenhei.
A figura e o pensamento teológico do padre Henri de Lubac SJ foram e continuam a ser para mim motivado de amor e de compromisso eclesial. No dia seguinte à minha chegada a Roma, em setembro de 1955, um colega mais velho pôs-me nas mãos o livro “Meditações sobre a Igreja” do padre de Lubac, com a recomendação de que não deixasse de o ler. Um livro precioso que me acompanha desde então e logo me fez ver a Igreja com olhos novos. Mais ainda quando soube que o seu autor tinha sido maltratado pelo Santo Ofício, a ponto de, por suspeita de um ensinamento menos ortodoxo, ser proibido de ensinar na sua Faculdade de Teologia, em Lyon, mantendo, apesar de tudo, para exemplo de quem o julgava, um eloquente testemunho de fé católica e amor à Igreja de Cristo. João XXIII chamou-o ao Concílio onde, como teólogo, foi determinante na elaboração da Constituição sobre a Igreja. No Concílio, o seu livro era lido pelos padres conciliares e a sua reflexão teológica assumida, livremente, pela maioria. Anos depois, já bispo, tive a alegria de conhecer o padre de Lubac, designado cardeal por João Paulo II, e dispensado da ordenação episcopal, dada a sua idade e saúde debilitada. Ao entrar na grande sala Paulo VI para receber das mãos do Papa o barrete cardinalício, foi acolhido, de pé, com uma estrondosa salva de palmas por uma multidão agradecida e comovida. Então, entendi todas as lágrimas não contidas.
Por certo, muitos não terão acesso fácil à lucidez do seu pensamento, impregnado de fé e realismo. Aqui fica esta página de exame de reflexão, para melhor conhecimento da Igreja de Cristo e empenhamento pessoal e comunitário na sua renovação, um objetivo que a todos diz respeito. É uma página do livro atrás referido, para ler e meditar. Diz o padre de Lubac: “Pelo que me toca, atrevo-me a dizer que se a Igreja não fora o que pretende ser, se não vivera essencialmente da sua fé em Jesus Cristo, daquela fé que o apóstolo Pedro proclamou no caminho da Cesareia, não deixaria de me dececionar em seus atos humanos para me separar dela… Se Jesus Cristo não constitui a sua riqueza, a Igreja é miserável. Se o Espírito de Jesus Cristo não floresce nela, a Igreja é estéril. O seu edifício ameaça ruína, se não é Jesus Cristo o seu arquiteto e se o Espírito Santo não é o cimento das pedras vivas em que está construída… Toda a sua doutrina é mentira, se não anuncia a Verdade que é Jesus Cristo. Toda a sua glória é vã, se não está fundada na humanidade de Jesus Cristo. O seu próprio Nome nos parece estranho se não evoca imediatamente em nós o único Nome que foi nos dado para que alcancemos a salvação. A Igreja não significa nada para nós se não é o sacramento, o sinal eficaz de Jesus Cristo.” E acrescenta ainda: “Jamais um texto, seja ou não conciliar, esgotará a ideia de Igreja, tal como a vive a Tradição cristã desde as suas origens, com maior ou menor profundidade.”
Compreendemos a insistência de João Paulo II ao dizer, textualmente, na sua primeira encíclica “Redentor do homem”: “A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso, é a de dirigir o olhar do homem e de endereçar a consciência e experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo, de ajudar todos os homens a ter familiaridade com a profundidade da Redenção que se verifica em Cristo Jesus.” E dando conta da determinação da sua fé, o Papa acrescenta: “A única orientação do espírito, a única direção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direção de Cristo, Redentor do homem, na direção de Cristo, Redentor do mundo.”
O cardeal Ratzinger, futuro Papa, disse, no II Sínodo da Europa (1999), que “a Igreja fala muito de si e pouco de Jesus Cristo”. Os acontecimentos recentes recomendam um sério exame de consciência neste aspeto, tendo em conta o que se diz, se escreve, se faz e promete. Também a isso nos obriga o testemunho do Papa Francisco, que se debate numa Igreja que se fez centro, olha muito para si, mas continua poluída por excrescências históricas que ensombram a verdade de um só Senhor, o Senhor Jesus.