Multidões, grupos e elites
«Durante os séculos de um acentuado clericalismo, o povo não passava de consumidor de uma religião tradicionalista e festivaleira, nem sempre agradável nem fácil. O fermento deve ser da natureza da massa para que a possa levedar. Sempre que não existe este cuidado de criar na comunidade um fermento vivo e ativo que ajude a preparar as manifestações religiosas, as oriente e apoie, e continue depois a prestar uma ajuda renovadora, os resultados positivos, menores se não mesmo nulos, serão sempre mais ou menos passageiros. Organizar manifestações é mais fácil e rápido do que educar na fé os que nelas participam.»
O que se passa na Igreja passa-se também na sociedade. Outros valores, outros objetivos, mas a mesma realidade. Na Igreja multiplicam-se as multidões em peregrinações, romarias, assembleias, cortejos, festas da terra, celebrações de datas e agora encontros de jovens por cá e noutras terras longínquas. Na sociedade reúne-se muita gente em manifestações desportivas, protestos de rua, festas partidárias, comícios, em espetáculos e diversões de lazer. O povo exprime-se e participa, com maior facilidade em multidão anónima que por meios que personalizem.
Não falta quem se interrogue sobre o valor destes acontecimentos, em função dos resultados esperados e da renovação almejada. No caso das manifestações de carácter religioso, que se multiplicam no verão, não faltam opiniões críticas divergentes, sobre o seu valor e alcance evangelizador, sobre a personalização da fé e a verdade dos sentimentos cristãos dos que participam. Olhos de laboratório, mais do que de compreensão do povo e da vida real. A alternativa seria, para estes, dar apenas importância à formação de grupos e de elites que expressem, de modo diferente, a fé e o compromisso apostólico, e menosprezar as manifestações religiosas de massa.
Certamente, o caminho, logo então apontado por gente mais criteriosa e de visão abrangente, não é de exclusão ou alternativa, mas de respeito e integração dos diversos caminhos das pessoas, segundo a sua história, mentalidade e capacidade de expressão. Tudo se realiza num clima de liberdade de adesão. Todos devem ser acolhidos e respeitados nas suas opções. Além do mais, a pedagogia de Jesus Cristo é referência obrigatória para o agir da Igreja. Ele atendia e tinha respeito pelas multidões que O procuravam e seguiam. Para todos proclamava a Boa Nova do Reino. A todos ensinava e acolhia. A favor de todos multiplicava prodígios. Porém, neste mesmo contexto, dava formação mais exigente a um pequeno grupo, os apóstolos, e tinha a segui-lo e ouvi-lo um grupo mais alargado de discípulos. Não para fazer discriminações, mas tendo como objetivo, em favor do povo anónimo, dar atenção especial aos que seriam fermento para levedar a multidão em ordem a uma vida nova e com as novas perspetivas do Reino, que Ele anunciava e construía.
Quando na Igreja se esquece a pedagogia evangélica e se fica preso a hipercríticas ou ao fascínio consolador das multidões, o abandono futuro da fé e a descrença progressiva estão a rondar a porta. Os tempos que correm já não constituem um ambiente motivador e favorável à fé e à prática da vida cristã, ainda que, por enquanto, muitos respeitem o povo e os seus sentimentos religiosos individuais. Durante os séculos de um acentuado clericalismo, o povo não passava de consumidor de uma religião tradicionalista e festivaleira, nem sempre agradável nem fácil. O fermento deve ser da natureza da massa para que a possa levedar. Sempre que não existe este cuidado de criar na comunidade um fermento vivo e ativo que ajude a preparar as manifestações religiosas, as oriente e apoie, e continue depois a prestar uma ajuda renovadora, os resultados positivos, menores se não mesmo nulos, serão sempre mais ou menos passageiros. Organizar manifestações é mais fácil e rápido do que educar na fé os que nelas participam.
É verdade que na multidão das romarias e até das peregrinações, onde se participa por razões variadas, é difícil chegar às pessoas para as ajudar a purificar as sua motivações e lhes dar a mão para poderem ir mais longe. Então deve dar-se maior atenção ao ambiente onde as pessoas se dirigem, para que se possam sentir tocadas pela força espiritual, que muitas precisam e procuram, sem que o saibam.
A história nos diz que uma ação pastoral de multidões, com mais ou menos participação pessoal, mas sem grupos-fermento, atuantes em permanência no seio das comunidades locais, e sem líderes evangelizados e formados para servir, é uma ação falhada e sem futuro, onde tudo, antes muito vistoso, se esvai como o fumo.
É verdade que as multidões das manifestações e celebrações religiosas são diferentes das que enchem os estádios desportivos para gritar e apoiar o seu clube e dirigir impropérios ao adversário e a quem dirige o jogo. Nem são como as manifestações políticas que obedecem às palavras de ordem de quem as promove e organiza. Nas manifestações religiosas há, normalmente, uma consonância de sentimentos, uma participação comum que se expressa livremente no mesmo sentido, um clima convocador e de vivência. Nada, porém, dispensa a atenção a prestar ao “depois” do acontecimento congregador. Na ação pastoral não deve predominar o espetáculo, mas sim o objetivo último, posteriormente avaliado. É a fidelidade a este objetivo que dá sentido a tudo quanto se programa e se faz nas comunidades cristãs.
António Marcelino