sábado, 13 de abril de 2013

É com Fé que todos somos homens, quando o somos.


Óscar Lopes e o Transcendente
Anselmo Borges

Óscar Lopes

Figura cimeira da cultura portuguesa do século XX, Óscar Lopes deu contributos fundamentais para a linguística, a crítica literária, a história da literatura. Falámos várias vezes. Em 1970, convidei-o para uma "mesa redonda" sobre "a crise da fé hoje", na qual também participou o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes. O que aí fica é uma homenagem ao pensador e professor, a partir dessa "mesa redonda".

D. António Ferreira Gomes, que tinha chegado havia pouco tempo do exílio, revelou que tinha "uma cartinha muito breve do Sr. Dr. Óscar Lopes (não combinámos nada), em que diz que a sua participação seria "um depoimento na primeira pessoa do singular acerca daquilo que durante 50 anos julgo ter crido a partir de um fervoroso catolicismo de infância. Apenas desejaria descobrir o melhor de mim mesmo no melhor catolicismo de hoje, e contribuir para tudo aquilo que deveras nos transcende"." E o bispo do Porto acrescentou: "Nós sabemos que a maior parte da nossa boa gente não transcende. Muitas vezes para o povo a religião no geral não significa nada de transcendente." E, depois de denunciar a religião das promessas, a religião utilitária, afirmou: "A religião cristã, entretanto, o limiar diferencial da religião cristã começa quando alguém se debruça sobre o outro, quando alguém se volta para aquilo que o transcende, seja o outro neste mundo, seja o outro absoluto (a relação ao outro absoluto é exactamente também a relação ao irmão). Por conseguinte, eu tenho para mim que quem procura pôr-se deveras em relação com aquilo que nos transcende está numa atitude religiosa. Desculpe, Senhor Doutor, se o ofendo." E Óscar Lopes: "De modo algum."



Para Óscar Lopes, que deixou de ser cristão por causa da afirmação do inferno, a virtude da fé bem como a da esperança são "inseparáveis do simples facto de se ser vivo e consciente". Citou o amigo Mário Sacramento: "Sim, é com Fé que todos somos homens, quando o somos."

Mas, para ele, a fé e a esperança não implicavam a fé em Deus e na sua Promessa. Confessava-se ateu, no quadro do materialismo dialéctico: "chamo "matéria" àquilo que corresponde ao conceito-limite daquilo donde provenho e daquilo para que tende o objecto do meu conhecimento e das minhas aspirações, quando esse conhecimento e essas aspirações se tornam mais adequadas." Numa linha comparável ao pensamento de Ernst Bloch, o materialismo significava progressismo e disponibilidade potencial de avanço sem fim no sentido da libertação plena: há uma esperança contínua, que está sempre para lá das nossas realizações à vista na História.

Marxista filiado no Partido Comunista, repudiava absolutamente "toda a forma de ateísmo de Estado e toda a forma de perseguição". O que nos une é o resgate de todos os males. O diálogo entre crentes e descrentes é necessário e fecundo para os dois lados: "Não é a mim que compete a apologética da Igreja, mas desejo com a maior sinceridade que ela vença a sua crise institucional de hoje, que ela leve a cabo o seu já hoje tão sensível esforço de desmitificação, de purificação e de dignificação. Se os teólogos mais avisados hoje vêem o ateísmo como uma teologia negativa que aumenta o grau de exigência quanto a qualquer concepção ou representação, sempre necessariamente inadequada, de Deus, os ateus como eu vêem qualquer religião que progrida como uma antítese indispensável para que o nosso materialismo se não converta, ele próprio, numa religião degradada, com o seu ritual, as suas fórmulas estereotipadas, a sua fúria catequística e uma grande suficiência incrítica."

Não acreditava na promessa cristã da ressurreição dos mortos, à sua espera. Mas, perguntado sobre a morte, concluiu: "Eu acredito numa sobrevivência. Há simplesmente esta pergunta: o que é que de mim desejo eu que sobreviva? E a esta pergunta eu não sou capaz de responder. Para mim existe apenas uma esperança para essas aspirações, de que a religião dá aproximações em mitos. Para mim, fica sempre a esperança, mas uma esperança que, em sinceridade, não sou capaz de tematizar, quer dizer, de reduzir a um símbolo, a uma imagem."

No DN

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