sábado, 23 de fevereiro de 2013

A dor e a morte não são a última palavra

As bem-aventuranças de um crente afável e crítico

José Gómez Caffarena

Era um homem muito educado, afável e atencioso. Invulgarmente penetrante e culto, um dos maiores especialistas em Kant, foi o filósofo da busca do enigma do Homem. Morreu, lúcido até ao fim, no passado dia 5, o dia em que fazia 88 anos. O jesuíta José Gómez Caffarena.
Falei várias vezes com ele, sempre amável e atento, esclarecendo dúvidas e problemas. A última vez que o vi, há dois anos, sabia que era a despedida. Convidei-o uma vez para vir a Portugal para um Colóquio. E falou sobre dois temas, com textos, excelentes: "Antropologia Filosófica: fenomenológica ou objectiva?" e "A Filosofia da Religião, uma mediação teórica importante". O que aí fica são apenas dois apontamentos e quer prestar uma homenagem a quem passou a vida dedicado à procura da verdade, no diálogo aberto, leal e crítico: pelo seu Instituto Fe y Secularidad, em Madrid, passaram todos os grandes intelectuais espanhóis, crentes ou não, como Pedro Laín, J. Aranguren, J. Sádaba, F. Savater. É preciso dar razões da própria fé e da esperança, o que implica a escuta das razões do outro. "Se um crente afirma na sua fé que existe uma verdade absoluta, afirma com isso que ele não a possui nem a pode possuir, pois está sempre a uma distância infinita dela. Deve admitir que, onde quer que um ser humano alcance algo de verdade, nessa medida também participa da Verdade Absoluta."


O Homem não é redutível às ciências objectivantes, pois a condição de possibilidade de objectivar é ele mesmo enquanto sujeito consciente, sempre co-implicado na busca de si. Por isso, é preciso avançar, no quadro de uma hermenêutica em processo, sempre a caminho. A "prova" da existência de Deus encontrava-a no dinamismo e inquietação radicais, constituintes do ser humano.

Com H. Bergson, admitia duas fontes da religião e da moral. A primeira está na consciência das nossas deficiências. A outra, a dos grandes místicos, está na intuição ou contacto profundo que tiveram com "o Fundo último, generoso, da realidade, contacto que transformou a sua visão do mundo e os impeliu a querer continuar no mundo a obra criadora dessa suprema Realidade amorosa".

Neste contexto, pensava que talvez seja legítimo formular, "como último acto de fé", que humanistas teístas e não teístas podem partilhar algo do género: "No seu esforço moral secular, e apesar dos seus fracassos, a Humanidade merece que não seja frustrada a sua esperança: merece que Deus exista."
Foi também dentro desta fé que proclamou as suas bem-aventuranças.

"Bem-aventurado aquele que ama e descobriu a dita de partilhar o mundo. Bem-aventurado quem não se isola na sua pequenez pensando ilusoriamente com isso que se vai 'realizar'. Bem-aventurado aquele que ama a vida tal como é e não como tende a representá-la. Bem-aventurado o humano que é capaz de acolher o outro humano para lá de toda a consideração das vantagens que possa trazer-lhe, que entendeu o perdão sem memória e a ternura sem retorno. Bem-aventurado aquele que chegou a conceber o imenso projecto da universalidade reconciliada. Bem-aventurado aquele que é consciente de que na sua pequenez é puro dom e graça, e sabe, no entanto, sentir-se a partir dela responsável pelo Reino inteiro da justiça, participante de um olhar divinamente maternal para os mais humildes e sofredores, as vítimas da opressão. Bem-aventurado quem não se escandaliza da pequenez humana, nem da própria nem da alheia, e crê que é possível que essa pequenez floresça na grandeza de uma fraternidade sem fronteiras. Bem-aventurado quem aceita a dor da luta sem ódio pelo dar à luz da verdade. Bem-aventurado quem é capaz de ver a possibilidade da paz antecipada, quem compreende que a violência é promessa enganosa, quem acha fecundo crer na bondade primeira do coração humano. Bem-aventurado quem não se escandaliza de a dor e a morte terem o seu tempo que não é possível eliminar definitivamente. Bem-aventurado quem crê que uma morte prematura de profeta é também eternamente fecunda." A dor e a morte não são a última palavra: "uma intuição da Humanidade praticamente universal."

Anselmo Borges,
no DN

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue