segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Valdemar Aveiro: A nossa vida parece ficção

A sua vida daria um romance



Valdemar Aveiro, 78 anos, natural de Ílhavo e residente na Gafanha da Nazaré desde que se casou, dois filhos e dois netos, oficial da Marinha Mercante e atual administrador da Empresa de Pesca S. Jacinto, é autor de dois livros, entre outros, com recordações da pesca do bacalhau. São eles “80 Graus Norte” (3.ª edição) e “Murmúrios do Vento”, onde evoca cenas do quotidiano a bordo dos navios, mas também pessoas que o marcaram indelevelmente. Sobretudo gentes ligadas às empresas de pesca, mas não só, em especial as que com ele enfrentaram trabalhos heróicos e mares bravios. 
Quem conhece o capitão Valdemar, como é mais conhecido na região, sabe que a sua vida, de sonhos realizados e por realizar, de lutas insanas, de canseiras teimosamente enfrentadas e de desafios constantes, daria um romance. De qualquer forma, os seus escritos, memorialistas na sua pureza literária, são o romance que pode ser apreciado como tal pelo leitor comum. 
Questionado sobre a eventualidade de escrever um romance, frontalmente afirma que «não é preciso», porque «a nossa própria vida parece ficção». E adianta, em jeito de explicação: «Falo daquilo que sei, não falo de ouvido; falo daquilo que posso provar; das pessoas com quem convivi e convivo; de gente de uma nobreza extraordinária.» 
Valdemar Aveiro caracteriza, com exuberância, os sofrimentos dos homens do mar na pesca do fiel amigo, «Todos, doentes, sofrendo do mesmo mal — a saudade pungente, o isolamento, a solidão, a ansiedade pelo dia do regresso sem data prevista, o trabalho esfalfante, o alívio do choro, as lágrimas silenciosas vertidas na escuridão do seu catre com a cortina corrida; todos igualmente condenados à abstinência prolongada que altera comportamentos, cria tensões, gera crises de agressividade traduzidas em destemperos explosivos a degenerar em conflito!». 



Embora natural de Ílhavo, o capitão Valdemar considera-se um gafanhão como qualquer outro. Filho de pai bacalhoeiro de dóri, acompanhou, desde menino, sua mãe — a tia Maria Polónia, como faz questão de sublinhar —, que por aqui vendia fruta e legumes, acumulando com a tarefa de caiadeira, cuja arte lhe permitia deixar as paredes das casas «sem santos». Brincou com crianças da sua idade no largo do Cruzeiro, lugar da Chave. Casou aos 24 anos e fixou residência no mesmo lugar. 
Depois da escola primária, foi como aprendiz para a barbearia de Joaquim Panela, no centro de Ílhavo, onde aprendeu a ter mão firme no escanhoar barbas rijas. Tornou-se até barbeiro ambulante, indo à casa dos fregueses. A seguir, entra numa oficina de serralharia, sem ganhar nada e ainda andou pela construção civil. Aos 15 anos, deu um grande salto, ingressando na Escola Profissional de Pesca, com o intuito de seguir a vida de bacalhoeiro. Aí se distinguiu, de tal modo que lhe foi atribuída uma Bolsa de Estudo para voos de nível superior. Antes, porém, fez uma viagem ao mar como moço, para pagar os custos da formação recebida naquela escola, mas foi dispensado do pagamento pela mesma razão do prémio da bolsa. 
Em Lisboa, viveu no Clube Stella Maris e recebeu lições, particulares, para fazer o curso liceal. Evoca, com admiração, os dois professores que o ajudaram grandemente nessa caminhada: Lélio Vaz de Sousa, ex-padre, em Letras; e Luciano de Passos Lima, em ciências. Contudo, não deixa de recordar, com emoção evidente, o esforço enorme que teve de enfrentar para atingir os seus objetivos, que eram o ingresso na Escola Náutica, que lhe daria o título de oficial da Marinha Mercante. 
Em 1957, concretiza esse sonho, embarcando como praticante de piloto no navio Santa Mafalda, da Empresa de Pesca de Aveiro, e três anos depois passa a imediato. E a sua vida prosseguia em bom ritmo. Porém, um outro sonho não o deixava em paz: ser médico. O desejo de «ter uma vida estável com a família» ajudou na decisão de rumar a outras paragens. 

Casado e com dois filhos, emigra para o Canadá em 1964, levado pela propaganda enganadora de que naquele país seria possível enriquecer-se rápida e facilmente. Os emigrantes que vinham de férias ou por carta «pintavam o Canadá e os Estados Unidos como países-modelo de desenvolvimento económico; exorbitavam tudo e até mostravam fotografias de casas e de carros», que compravam a prestações, como veio a confirmar. 
No Canadá, as suas habilitações não foram reconhecidas e teve de trabalhar como operário, o que aconteceu com amigos e colegas, muitos dos quais por lá ficaram nas profissões mais duras «a partir pedra». Obviamente, regressou pouco depois, para retomar a profissão de oficial da Marinha Mercante, a bordo de navios bacalhoeiros. 
Leitor inveterado, reconhece que foi pela leitura que lhe chegou a paixão pela escrita. Lia no mar e em terra e os seus primeiros escritos traduziram-se em cartas dirigidas às namoradas de amigos, os quais não tinham arte para escrever como ele. «Até fazia umas versalhadas», garantiu-nos com um sorriso largo, do tamanho das gratas recordações que lhe povoam o espírito. 
Mais tarde, com a riqueza acumulada de tantas vivências e com partilhas de horas boas e algumas muito difíceis na faina marítima, quis oferecer à posteridade registo do que o mais marcou. E aí estão os seus livros. 
Dois armadores o tocaram indelevelmente: Egas Salgueiro e Domingos Vaz Pais. O primeiro, figura marcante da Empresa de Pesca de Aveiro (EPA); e o segundo, da Empresa de Pescas “S. Jacinto”, de que o capitão Valdemar é membro do Conselho de Administração, desde 1991, estando nesta empresa há 42 anos. 
De Egas Salgueiro, «o grande senhor das pescas em Portugal», Valdemar Aveiro sublinha quanto a sua personalidade perdura na memória dos gafanhões, dos ilhavenses e dos povos da região. «De Ílhavo eram os oficiais; da Gafanha da Nazaré, a gente de músculo, da disponibilidade e da lealdade. Ele fazia dos seus funcionários gente fiel», disse. E acrescentou: «Dizia o senhor Egas que estes homens e mulheres foram os esteios nos momentos difíceis, que nunca o abandonaram, que trabalhavam até à hora que fosse preciso.» 
E sobre Vaz Pais e seus descendentes, por quem nutre estima especial, pela confiança que sempre em si depositaram, «durante cinco gerações», frisa o respeito mútuo que existiu e existe, enquanto salienta, do seu atual patrão, Luís Carlos Vaz Pais, a humildade, a sensibilidade social e a nobreza de caráter. 

Fernando Martins 




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