Fome instrumentalizada
Acácio Catarino
É evidente que muitas pessoas vivem subalimentadas em Portugal; passam fome. Evidente é também que outras pessoas denunciam isso mesmo, sem apresentarem números comprovativos nem propostas válidas de solução. Daí resulta que as denunciantes vão aumentando a sua notoriedade à custa das famintas, sem as beneficiarem suficientemente.
A instrumentalização da fome, e da pobreza em geral, sempre existiu. Hoje torna-se mais grave, por duas razões contrastantes: porque aumentou o número de pessoas subalimentadas; e porque as denunciantes não alteraram o seu posicionamento clássico, traduzido na insuficiência da ação direta, da consciência coletiva e de propostas políticas. A ação direta, sempre existiu em muitas localidades, mas não foi aprofundada nem generalizada. A consciência coletiva falha quase por completo, sendo substituída por impressões subjetivas e por ideias vagas. As propostas políticas são escassas e baseiam-se, muitas vezes, no pressuposto de que os recursos financeiros são, ou devem ser, ilimitados e de que as medidas ideais não são adotadas só porque os responsáveis políticos não querem. Para cúmulo, não raro, cada denunciante assume-se como detentor exclusivo das soluções ideais.
Hoje, tal como nas outras intervenções do Fundo Monetário Internacional no país, não correspondemos às nossas responsabilidades: não promovemos a ação social de proximidade; não fazemos a articulação entre as entidades que trabalham no domínio social; não difundimos nem trabalhamos as estatísticas dos casos sociais atendidos; não apresentamos medidas políticas viáveis para a solução desses casos; e não influenciamos os centros de decisão para que tais medidas, ou outras melhores, sejam adotadas. A política social continua a ser concebida «de cima para baixo», e a ação social de base continua a ser abandonada; tão abandonada como as vítimas da fome e da pobreza em geral.
Fonte: Correio do Vouga..