segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Um Conto de Natal: O meu amigo Xavier



No recreio da escola que frequentámos, já lá vão boas décadas, o Xavier dava nas vistas. Na formação das equipas, com a malta alinhada à espera da escolha, o Xavier orientava o processo e ditava as leis, sem ninguém resmungar, não fosse isso motivo para em próxima operação o resmungão ficar de lado. E os jogos, de futebol e outros, lá decorriam com o Xavier a tirar dúvidas ao jeito de árbitro sabido e experimentado. Era um líder natural e respeitado. 
Noutros momentos, sem jogos por não haver tempo para isso, as conversas em que participava mostravam um jovem atento e dialogante, amigo do seu amigo, parcimonioso com os colegas menos conhecidos, frontal na defesa das suas posições e ideias, mas respeitador, aceitando que cada um era livre de pensar e de dizer o que bem entendesse, sem ferir ninguém. A nossa amizade vem daí e assim tem continuado. 
A vida do Xavier deu muitas voltas. Profissional competente e esforçado foi saltando de emprego em emprego ao sabor da vida e das necessidades da família, que na idade própria constituiu por amor à Joana a quem se uniu para sempre. Filhos e netos encheram-lhe o regaço e disso me dava conta espontaneamente, em conversas fugazes ou mais prolongadas, em horas de confidências que nos eram comuns. 
Viajar, por razões profissionais ou familiares, passou a hábito apaixonado. E quando regressava das suas andanças gostava de me contar o que havia deparado de belo, desde paisagens e ambientes que lhe emolduravam o sorriso, desde pessoas e culturas exóticas que o levavam a garantir que haveria de conhecer melhor, desde regimes políticos e civilizações que o entusiasmavam e sonhava ver entre nós, desde catedrais esplendorosas que o deixavam extasiado e até capelinhas que indiciavam devoções fervorosas. 


O Xavier nasceu no seio de uma família cristã, cumpridora dos mandamentos de Deus e da Igreja, semelhante a muitas outras que respeitavam as tradições que herdaram dos seus antepassados, porém, sem preocupações de reflexão que conduzisse a um cristianismo mais responsável e atuante. Talvez por isso, o Xavier foi-se desligando, paulatina mas deliberadamente, da prática religiosa, melhor dizendo, da vida cultual. Que os valores pelos quais se regia, de justiça social sobretudo, esses perduraram até hoje. Mas um dia, de repente e sem mais explicações, declarou-se ateu, umas vezes, agnóstico, outras. Ainda tentei conversar. «Não vale a pena… sou ateu!», garantiu-me com alguma veemência. Dizia-se ateu, mas um dia veio perguntar-me a quem é que podia encomendar umas missas por alma do pai. «Como assim?», questionei-o. E ele, de pronto, atirou-me: «Deixa-te de conversas. O meu pai, onde quer que esteja, vai gostar.» 
Nem por isso, contudo, foi perturbada a nossa amizade. As conversas esporádicas continuam e até a religião vem com frequência à baila. Os documentos pontifícios e a fé do povo entram nos esquemas, não com espírito de má-língua, mas com pedidos de esclarecimentos, sendo da sua preferência as questões sociais e as respostas que a Igreja e a sociedade dão aos mais desprotegidos. O Xavier é assim. 
Outra faceta da sua personalidade está bem vincada no culto da família, com as datas festivas com lugar cativo no seu espírito e na sua vida. E o Natal, com o presépio, é motivo para conviver com os netos, decerto como fez com os filhos. Soube disso há dias, quando me enviou um e-mail com algumas dúvidas acicatadas pela comunicação social. Dizia assim: 

«Manel 

O Papa deixou-me baralhado ao dizer que o burrinho e a vaquinha não faziam parte do presépio; diz-me lá como é que eu agora vou explicar isso aos meus netos! O Papa, com esta história, veio estragar tudo. 

Um abraço, 

Xavier»

E eu respondi: 

«Meu caro Xavier 

O Papa não baralhou nada. Alguns jornalistas é que, à cata de “cachas”, foram para o mais simples, já que não teriam capacidade nem tempo para voos mais altos na análise ao recente livro de Joseph Ratzinger (Bento XVI), Jesus de Nazaré — A Infância de Jesus. E então agarraram-se à vaca e ao burro, deixando de lado o mais importante. Mas vamos ao que importa. 
Podes começar por ler as descrições de S. Lucas e de S. Mateus. Já agora, aqui fica o que esses evangelistas afirmaram, não vá dar-se o caso de te faltar tempo para leituras: 
O primeiro diz, depois de lindas considerações, que podes aproveitar para ficares mais esclarecido para melhor esclareceres: «Enquanto estavam em Belém [Maria e José], chegou o momento de Maria dar à luz. Nasceu-lhe então o menino, que era o seu primeiro filho. Envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, por não conseguirem lugar na casa». E o segundo afirma: «Jesus nasceu em Belém, na região da Judeia, no tempo do rei Herodes. Depois do seu nascimento, chegaram uns sábios do Oriente a Jerusalém e perguntaram: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? É que nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.”» 
É claro, meu caro, que o diálogo com os teus netos tem de ser o mais simples possível, para que não fiquem confusos. O importante é dizer-lhes que Jesus nasceu num espaço humilde, que contrasta com o amor infinito que o Menino-Deus inspira os homens e mulheres de boa vontade. Foi visitado por pastores e até sábios o procuraram. Também, com certeza, os vizinhos e amigos terão ido visitar o Menino e sua Mãe. 
Já agora, podes pôr tudo o que quiseres e tudo o que quiserem os teus netos, com a explicação muito humana de que, no presépio, pode figurar, ao menos simbolicamente, toda a humanidade: pastores e reis, trabalhadores e patrões, pobres e ricos, artistas e sábios, homens e mulheres, meninos e meninas de todos os cantos da terra. O Menino-Jesus, afinal, veio para todos, crentes e não crentes. E ainda os animais e plantas, rios e lagos, montanhas e vales, sol e lua, enfim, toda a natureza, numa envolvência universal. O presépio não passa, afinal, de uma recriação feliz de uma realidade que veio iniciar um ciclo histórico, dando primazia à fraternidade. Com a ajuda de S. Francisco e a imaginação do povo, dos artistas e dos mais sensíveis ao bem, aí o temos renovado ano a ano. 

Um abraço 

Manuel» 

Dias depois, o Xavier volta com mais uma questão. 

«Manel 

Está tudo muito certo, como dizes. A fraternidade universal é um ideal, difícil de atingir. Mas é bom que tentemos. E já agora, que me dizes sobre a história da estrela, que não entra no meu entendimento, muito menos no entendimento dos meus netos, porque as estrelas não andam por aí a guiar as pessoas, embora, curiosamente, a estrela polar e outras sirvam de orientação aos navegantes e viajantes. 

Cumprimentos 

Xavier» 

E eu ripostei com toda a sinceridade: 

«Meu caro, 

Dizes que as estrelas não guiam as pessoas, mas afinal guiam, como afirmas. 
O melhor será explicares que a estrela que abriu os olhos da inteligência e do coração aos sábios não era mais, porventura, do que o próprio Jesus anunciado há séculos, e que, com o seu nascimento humilde, se tornou numa Nova Luz da Humanidade, capaz de indicar caminhos de verdade, de paz, de justiça, de fraternidade e de amor. 
Não sei se gostaste de ler ou reler a Bíblia, sobretudo as curtas passagens do nascimento de Jesus Cristo. A leitura da Bíblia não faz mal a ninguém. E tu sabes muito bem que a cultura só nos enriquece. E até pode abrir portas que nos libertem para novos e mais altos desafios. 
Bom Natal, como muita alegria e paz, para ti e para toda a tua família. 

Manuel» 

Fernando Martins





Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue