No recreio da escola que frequentámos, já lá vão boas décadas, o Xavier dava nas vistas. Na formação das equipas, com a malta alinhada à espera da escolha, o Xavier orientava o processo e ditava as leis, sem ninguém resmungar, não fosse isso motivo para em próxima operação o resmungão ficar de lado. E os jogos, de futebol e outros, lá decorriam com o Xavier a tirar dúvidas ao jeito de árbitro sabido e experimentado. Era um líder natural e respeitado.
Noutros momentos, sem jogos por não haver tempo para isso, as conversas em que participava mostravam um jovem atento e dialogante, amigo do seu amigo, parcimonioso com os colegas menos conhecidos, frontal na defesa das suas posições e ideias, mas respeitador, aceitando que cada um era livre de pensar e de dizer o que bem entendesse, sem ferir ninguém. A nossa amizade vem daí e assim tem continuado.
A vida do Xavier deu muitas voltas. Profissional competente e esforçado foi saltando de emprego em emprego ao sabor da vida e das necessidades da família, que na idade própria constituiu por amor à Joana a quem se uniu para sempre. Filhos e netos encheram-lhe o regaço e disso me dava conta espontaneamente, em conversas fugazes ou mais prolongadas, em horas de confidências que nos eram comuns.
Viajar, por razões profissionais ou familiares, passou a hábito apaixonado. E quando regressava das suas andanças gostava de me contar o que havia deparado de belo, desde paisagens e ambientes que lhe emolduravam o sorriso, desde pessoas e culturas exóticas que o levavam a garantir que haveria de conhecer melhor, desde regimes políticos e civilizações que o entusiasmavam e sonhava ver entre nós, desde catedrais esplendorosas que o deixavam extasiado e até capelinhas que indiciavam devoções fervorosas.
O Xavier nasceu no seio de uma família cristã, cumpridora dos mandamentos de Deus e da Igreja, semelhante a muitas outras que respeitavam as tradições que herdaram dos seus antepassados, porém, sem preocupações de reflexão que conduzisse a um cristianismo mais responsável e atuante. Talvez por isso, o Xavier foi-se desligando, paulatina mas deliberadamente, da prática religiosa, melhor dizendo, da vida cultual. Que os valores pelos quais se regia, de justiça social sobretudo, esses perduraram até hoje. Mas um dia, de repente e sem mais explicações, declarou-se ateu, umas vezes, agnóstico, outras. Ainda tentei conversar. «Não vale a pena… sou ateu!», garantiu-me com alguma veemência. Dizia-se ateu, mas um dia veio perguntar-me a quem é que podia encomendar umas missas por alma do pai. «Como assim?», questionei-o. E ele, de pronto, atirou-me: «Deixa-te de conversas. O meu pai, onde quer que esteja, vai gostar.»
Nem por isso, contudo, foi perturbada a nossa amizade. As conversas esporádicas continuam e até a religião vem com frequência à baila. Os documentos pontifícios e a fé do povo entram nos esquemas, não com espírito de má-língua, mas com pedidos de esclarecimentos, sendo da sua preferência as questões sociais e as respostas que a Igreja e a sociedade dão aos mais desprotegidos. O Xavier é assim.
Outra faceta da sua personalidade está bem vincada no culto da família, com as datas festivas com lugar cativo no seu espírito e na sua vida. E o Natal, com o presépio, é motivo para conviver com os netos, decerto como fez com os filhos. Soube disso há dias, quando me enviou um e-mail com algumas dúvidas acicatadas pela comunicação social. Dizia assim:
«Manel
O Papa deixou-me baralhado ao dizer que o burrinho e a vaquinha não faziam parte do presépio; diz-me lá como é que eu agora vou explicar isso aos meus netos! O Papa, com esta história, veio estragar tudo.
Um abraço,
Xavier»
E eu respondi:
«Meu caro Xavier
O Papa não baralhou nada. Alguns jornalistas é que, à cata de “cachas”, foram para o mais simples, já que não teriam capacidade nem tempo para voos mais altos na análise ao recente livro de Joseph Ratzinger (Bento XVI), Jesus de Nazaré — A Infância de Jesus. E então agarraram-se à vaca e ao burro, deixando de lado o mais importante. Mas vamos ao que importa.
Podes começar por ler as descrições de S. Lucas e de S. Mateus. Já agora, aqui fica o que esses evangelistas afirmaram, não vá dar-se o caso de te faltar tempo para leituras:
O primeiro diz, depois de lindas considerações, que podes aproveitar para ficares mais esclarecido para melhor esclareceres: «Enquanto estavam em Belém [Maria e José], chegou o momento de Maria dar à luz. Nasceu-lhe então o menino, que era o seu primeiro filho. Envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, por não conseguirem lugar na casa». E o segundo afirma: «Jesus nasceu em Belém, na região da Judeia, no tempo do rei Herodes. Depois do seu nascimento, chegaram uns sábios do Oriente a Jerusalém e perguntaram: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? É que nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.”»
É claro, meu caro, que o diálogo com os teus netos tem de ser o mais simples possível, para que não fiquem confusos. O importante é dizer-lhes que Jesus nasceu num espaço humilde, que contrasta com o amor infinito que o Menino-Deus inspira os homens e mulheres de boa vontade. Foi visitado por pastores e até sábios o procuraram. Também, com certeza, os vizinhos e amigos terão ido visitar o Menino e sua Mãe.
Já agora, podes pôr tudo o que quiseres e tudo o que quiserem os teus netos, com a explicação muito humana de que, no presépio, pode figurar, ao menos simbolicamente, toda a humanidade: pastores e reis, trabalhadores e patrões, pobres e ricos, artistas e sábios, homens e mulheres, meninos e meninas de todos os cantos da terra. O Menino-Jesus, afinal, veio para todos, crentes e não crentes. E ainda os animais e plantas, rios e lagos, montanhas e vales, sol e lua, enfim, toda a natureza, numa envolvência universal. O presépio não passa, afinal, de uma recriação feliz de uma realidade que veio iniciar um ciclo histórico, dando primazia à fraternidade. Com a ajuda de S. Francisco e a imaginação do povo, dos artistas e dos mais sensíveis ao bem, aí o temos renovado ano a ano.
Um abraço
Manuel»
Dias depois, o Xavier volta com mais uma questão.
«Manel
Está tudo muito certo, como dizes. A fraternidade universal é um ideal, difícil de atingir. Mas é bom que tentemos. E já agora, que me dizes sobre a história da estrela, que não entra no meu entendimento, muito menos no entendimento dos meus netos, porque as estrelas não andam por aí a guiar as pessoas, embora, curiosamente, a estrela polar e outras sirvam de orientação aos navegantes e viajantes.
Cumprimentos
Xavier»
E eu ripostei com toda a sinceridade:
«Meu caro,
Dizes que as estrelas não guiam as pessoas, mas afinal guiam, como afirmas.
O melhor será explicares que a estrela que abriu os olhos da inteligência e do coração aos sábios não era mais, porventura, do que o próprio Jesus anunciado há séculos, e que, com o seu nascimento humilde, se tornou numa Nova Luz da Humanidade, capaz de indicar caminhos de verdade, de paz, de justiça, de fraternidade e de amor.
Não sei se gostaste de ler ou reler a Bíblia, sobretudo as curtas passagens do nascimento de Jesus Cristo. A leitura da Bíblia não faz mal a ninguém. E tu sabes muito bem que a cultura só nos enriquece. E até pode abrir portas que nos libertem para novos e mais altos desafios.
Bom Natal, como muita alegria e paz, para ti e para toda a tua família.
Manuel»
Fernando Martins