Padre Carlo Maria Martini
Segundo o protocolo, um cardeal é tratado por Eminência. O cardeal Carlo Maria Martini recusava esse tipo de tratamento: "Chame-me Padre Carlo Maria Martini."
Até nisto era eminente. Por isso, denunciava vícios impregnados na Igreja. Para ele, "o vício clerical por excelência" é a inveja. Mas há outros pecados capitais na Igreja: a vaidade e a calúnia. "Que grande é a vaidade na Igreja! Ela tem essa tendência para a ostentação, o alarde." E há o "terrível carreirismo" clerical, especialmente na Cúria Romana, "onde todos querem ser mais". Precisamente por causa do carreirismo é que muitos se calam: "certas coisas não se dizem, porque se sabe que bloqueiam a carreira." Isso é "péssimo na Igreja". A verdade brilha pela ausência, pois "procura-se dizer o que agrada ao superior e age--se como cada um imagina que o superior gostaria, prestando deste modo um fraco serviço ao Papa".
Especialista em ciências bíblicas, Martini era um intelectual reconhecido mundialmente, com vários doutoramentos e falando muitas línguas. Foi Director do Instituto Bíblico de Roma e Reitor da Universidade Gregoriana. Depois, esteve à frente da arquidiocese de Milão durante 22 anos e presidiu ao Conselho das Conferências Episcopais da Europa. Quando completou 75 anos, retirou-se para Jerusalém - não quis ficar perto do Vaticano: "Jerusalém é a minha pátria. Antes da pátria eterna."
Falava com liberdade interior limpa, em sincera sintonia com os problemas dos homens, das mulheres e dos jovens, e tinha convicções e coerência de vida. Não receava discutir com Deus e fazer-lhe perguntas - não disse Heidegger que "a pergunta é a piedade do pensamento"? "Como bispo, perguntei frequentemente a Deus: porque não nos dás ideias melhores, porque não nos fazes mais fortes no amor, mais corajosos ao lidar com as questões actuais?" Não conseguia compreender porque é que Deus deixou morrer o seu Filho na cruz. "Combati com Deus", "porque, quando vejo o mal do mundo, fico sem alento e entendo os que chegam à conclusão de que Deus não existe".
Não era de modo nenhum partidário de propostas tíbias, e criticava a nossa sociedade, que não sabe viver com a dificuldade e, "no fundo, se baseia no espectáculo e no aparecer", mas ousou enfrentar com realismo e valentia questões de ética, nomeadamente no domínio sexual, como a homossexualidade, a contracepção, o preservativo, o problema dos divorciados recasados -"prevejo que a Igreja deva encontrar soluções para estas pessoas"-, e propugnava reformas profundas na estrutura da Igreja, como mais participação de todos, fim do celibato obrigatório, ordenação de mulheres - "os homens de Igreja têm de pedir perdão às mulheres".
Era um místico, que confiava radicalmente em Deus. "Talvez, ao morrer, alguém segure a minha mão. Desejo nesse momento poder rezar. Durante toda a vida reflecti sobre Deus e sobre o além; neste momento, não sei nada a não ser que eu próprio na morte também me sinto acolhido. Isto é também a minha esperança." No seu último escrito no Il Corriere della Sera, escreveu: "Deus quis que passássemos por esta 'dura viela' que é a morte e que entrássemos na escuridão que mete sempre um pouco de medo. A morte obriga-nos a confiar totalmente em Deus."
Gostava da expressão "a concupiscência da criatividade" e declarava-se um enamorado da justiça, "o atributo fundamental de Deus." Reclamava coragem para si e para Igreja, também porque "a vida me demonstrou que Deus é bom", um Deus que sentia "nas estrelas, no amor, na música, na literatura e na palavra da Bíblia". "O assombro pode levar a Deus."
Homem de diálogo, criou em Milão a "Cátedra dos não crentes" e, reportando-se a um pensamento de Norberto Bobbio, dizia: "O que me interessa é a diferença entre pensantes e não pensantes. Quero que todos vós sejais pensantes. Depois, escutarei as razões de quem crê e as de quem não crê."
A quem o acusava de ser anti-Papa, respondia: "Serei um 'ante-Papa' (um Papa da frente), alguém que se adianta ao Santo Padre como seu colaborador e que trabalha para ele."