Por António Marcelino
«Foi longo o tempo em que o contacto com a Palavra de Deus, por parte do povo cristão, foi escasso. A Igreja de Roma temia adulterações na Bíblia e dificultava as traduções. Praticamente só tinha acesso à Bíblia o clero, mesmo assim o mais erudito, porque escasseavam as traduções, e a leitura, em grego ou latim, não era fácil. O Concílio encontrou o terreno preparado, porque o movimento bíblico, de cariz renovador, foi ajudando a descobrir o valor da Sagrada Escritura. Pode dizer-se que o passo definitivo que levou a Bíblia ao Povo parte da constituição conciliar.»
Em novembro de 1965 foi publicada a constituição conciliar sobre a Divina Revelação, com o título “Dei Verbum” ou a “Palavra de Deus”. Não foi um documento pacífico e exigiu, logo no início, uma decisão do Papa João XXIII, sem a qual seria difícil avançar. Roma tinha preparado um esquema a seu gosto e fez tudo para o impor. Outros bispos, atentos ao que se passava na Igreja e no mundo, derrubaram os sonhos romanos, para tornar possíveis horizontes novos e urgentes na Igreja. E João XXIII decidiu. O texto dos romanos foi retirado. O documento conciliar demorou a ter a sua redação final. O esquema retirado entrara na aula conciliar logo no primeiro mês.
Foi longo o tempo em que o contacto com a Palavra de Deus, por parte do povo cristão, foi escasso. A Igreja de Roma temia adulterações na Bíblia e dificultava as traduções. Praticamente só tinha acesso à Bíblia o clero, mesmo assim o mais erudito, porque escasseavam as traduções, e a leitura, em grego ou latim, não era fácil. O Concílio encontrou o terreno preparado, porque o movimento bíblico, de cariz renovador, foi ajudando a descobrir o valor da Sagrada Escritura. Pode dizer-se que o passo definitivo que levou a Bíblia ao Povo parte da constituição conciliar.
No início do século passado, os estudos bíblicos, que já então contavam com exegetas de grande saber e com escolas de renome, eram vistos com desconfiança. A Bíblia era o livro dos protestantes, que eles interpretavam livremente. O poder eclesiástico via nisto um perigo para os guardiões da fé. Em 1902, criou-se uma Comissão Bíblica Pontifícia, altamente conservadora. Tomou posições que, mais tarde, foram postas de parte e mesmo desautorizadas. Em 1909, Pio X criou em Roma o Instituto Bíblico Pontifício, que formou gerações de padres para professores de Sagrada Escritura nos seminários e universidades. Deve-se, porém, a Pio XII (1943), com uma sua encíclica, a abertura às ciências positivas e à sua influência nos estudos bíblicos. Logo, então, se relativizaram algumas afirmações, sobretudo da Comissão Bíblica, até então fechada ao contributo destas ciências.
O texto das instâncias romanas, silenciosamente preparado, segundo o estilo daquelas, foi levado à assembleia conciliar. Pretendia, segundo os proponentes, travar os “desmandos” exegéticos, sempre considerados perigosos. A interpretação da Sagrada Escritura não se podia fazer, de modo correto, sem o recurso às ciências positivas, como recomendara Pio XII.
O grande problema que, de início, se pôs à assembleia foi o das fontes da Revelação Divina. Duas fontes ou uma só? Duas fontes, a Sagrada Escritura, Antigo e Novo Testamento, por um lado, e, por outro, a Tradição apostólica? Ou apenas uma única fonte, com dois momentos importantes, Bíblia e Tradição, ainda que diferentes? A grande maioria conciliar foi neste sentido, uma única fonte, doutrina que foi proposta pela Constituição. A Tradição Apostólica e dos Padres da Igreja, como vivência concreta da fé, fundamentada na Palavra, ela mesma enriquece o sentido da Palavra.
Mas a afirmação da qual a Igreja precisa de tomar consciência é que Jesus Cristo, o Filho de Deus, é Ele mesmo a plenitude da Revelação, que se pode explicar deste modo: “A Revelação Divina não aparece na Dei Verbum, como um corpo de verdades doutrinais contidas na Escritura e ensinadas na Igreja, mas apresenta-se como a automanifestação de Deus na história da salvação, da qual Cristo constitui o ponto mais alto”. Toda a Constituição tem Cristo como centro: um ponto fundamental da doutrina conciliar, para que a Igreja não perca o sentido do que é e do que faz.