quarta-feira, 11 de julho de 2012

Carta a um amigo sobre a vida espiritual

Por José Tolentino Mendonça

Depois percebemos que a vida espiritual não pode ser uma coisa à parte, e que saudavelmente coincide com a única vida que temos. O que há em nós de realização e de desejo, de tensão irresolúvel e de dom; o que nos habita da forma mais habitual; o que nos afunda mais na terra, no corpo e no tempo: é aí que ouvimos (ou podemos ouvir) os passos de Deus.

Falar da vida espiritual é sempre sondar as zonas mais profundas (e por isso também mais reais, mais imperfeitas, mais inacabadas) do nosso coração. A espiritualidade não é uma busca epidérmica e apressada de satisfação. Na maior parte do percurso a pergunta que vale não é “o que me sacia?”, mas “qual é a minha sede?”. Gosto da maneira como os autores clássicos da vida espiritual falam dela como de uma luta. O próprio Jesus lembra que não veio trazer a paz das aparências, mas a espada que penetra as camadas mais íntimas. A vida espiritual é isso: por vezes uma luta, por vezes uma luminosa dança.

Podemos fazer muitos atos ligados ao espiritual ou ao devocional e não estar a construir uma verdadeira experiência de vida espiritual. De facto, esta só cresce quando no centro está uma relação. Não basta crer, nem pertencer. É necessário mergulhar, habitar (ou melhor, saber-se habitado). E tudo o resto: descobrir-se buscado, querido, bem-amado. A vida espiritual não é da ordem do fazer, mas do ser.

Diz-se que estes duros tempos de crise económica, em que todos os dias vemos tombar o modelo que identificava a felicidade com o poder de compra (ou com a sua ilusão), constituem uma oportunidade para a redescoberta do espiritual. Pode bem ser. Mas no lugar de um ídolo, não podemos colocar outro. A vida espiritual não é um oculta-vazios ou um alívio emocional para sociedades à beira de um ataque de nervos. É uma aventura maior, que nos radica na verdade nua do homem e na verdade de Deus. Partamos daí.




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