Texto de António Marcelino
É o Povo de Deus que expressa a presença e a ação divina na cidade dos homens. Os seus membros, incorporados em Cristo, são, com Ele, profetas, sacerdotes e reis. São assim por dom de Deus e não podem furtar-se a realizar a sua missão no mundo, segundo a sua vocação de leigos, consagrados ou ministros ordenados.
Profetas na família, na convivência diária, no trabalho, no lazer, na vida pública, porque sempre e em todas as ocasiões se pode e deve iluminar a vida com a luz da Palavra. O profeta não fala de si, mas daquele que o enviou, o assiste, o torna atento aos sinais, o impele a agir, o faz irmão do seu irmão e sempre reconciliador de todos, crentes e não crentes.
Há défice de profetismo no Povo de Deus. Durante séculos, pensou-se que só a hierarquia exercia e podia exercer tal tarefa e, mesmo nesta, quase só o Papa. Ficou famosa a expressão “Roma falou e a causa terminou”. Certamente que a hierarquia, serviço instituído por Cristo para servir o seu Povo, a tempo inteiro, exerce a favor deste um profetismo indispensável. Serve pelas suas intervenções de ordem doutrinal e moral e como ação que garante a comunhão e a unidade na comunidade de irmãos. Em casos e circunstâncias determinadas e concretas, os cristãos devem sentir-se obrigados à aceitação e seguimento do que lhes é proposto, sem que isso anule o seu profetismo batismal.
Todos os batizados gozam também do sacerdócio comum, que precede o sacerdócio dos bispos e dos presbíteros. Em tudo na vida devem prestar culto a Deus e adorá-lo como o Deus único. Este sacerdócio atualiza-se na prática dos sacramentos, dos conselhos evangélicos e das virtudes cristãs. Ele é, também, o apelo mais forte a viver rumo à perfeição da santidade.
Também aqui, o desconhecimento de tal riqueza é comum na maioria dos cristãos leigos. Certamente porque ninguém os abriu para esta dimensão da sua dignidade cristã e o sentido sacerdotal de toda a sua vida, ficando aprisionados, por tradição, a práticas cultuais que foram perdendo o sentido, por via das rotinas e da falta de horizontes libertadores.
Os batizados em Cristo são, ainda, reis à maneira de Cristo, que traduziu a sua realeza, por obras e palavras, ao serviço aos outros, deixando a norma para os que vivem em discipulado: “Vim para servir, não para ser servido”; “Como Eu fazei vós também”. De muitos modos se pode e deve manifestar a dimensão do serviço na comunidade. Daqueles cuja vocação só se explica e justifica como serviço permanente ao Povo de Deus, a hierarquia, todos têm direito a receber testemunho, formação e estímulo para exercerem esta dimensão de servidores, como a sua realeza.
A Igreja, mãe e mestra, serva e pobre, só o poderá ser, no sentido evangélico, pela vivência cristã de todos os seus membros. Está aqui a força do testemunho que convence e dá sentido às palavras, bem como o valor convincente às suas propostas doutrinais e morais.
A recuperação, onde ainda não se fez, da consciência da Igreja de Cristo como Povo de Deus, torna-se uma exigência inadiável de toda a ação pastoral. A Comunhão eclesial tem a sua fonte inesgotável na vivência trinitária, a Unidade, na fé professada em Jesus Cristo que dela fez projeto salvador, a Missão, encargo diário que toca a todos sem exceção, têm no Povo de Deus a sua expressão, a sua vivência, a sua garantia de verdade.