Uma reflexão de Georgino Rocha
A exortação é dirigida às futuras “colunas” da Igreja – Pedro, Tiago e João – e, nelas, aos discípulos e aos cristãos de todos os tempos. A voz que se faz ouvir é de Deus Pai, profundamente envolvido na “aventura” em curso protagonizada pelo Nazareno perturbador. O Filho amado a quem é preciso escutar é Jesus que se deixa transfigurar, antecipando a dimensão futura do itinerário vital, recorrendo à brancura irradiante das vestes.
Marcos descreve o episódio ocorrido num alto monte e, com reminiscências de outras passagens bíblicas, elabora uma excelente catequese sobre o esperado Messias. Situa a transfiguração num momento crucial da missão de Jesus: Fá-lo sentir o fracasso devido à incompreensão do povo que o deseja político e curandeiro; à hostilidade das autoridades que não o querem tão politizado; ao endurecimento do coração dos discípulos que não deixam de pensar num messias poderoso; A tentação “bate” forte e mostra-se de modo emblemático no deserto para onde Jesus é impelido pelo Espírito.
“Seis dias depois”, precisa Marcos, de ter testado a aceitação da sua mensagem e o grau de adesão à sua pessoa em Cesareia de Filipe e verificado a confusão predominante, o Nazareno dá um passo qualitativo em frente. E provoca a cena da transfiguração, em que as suas credenciais são de novo apresentadas de forma solene e definitiva. “Este é o meu Filho amado. Escutai-O”. A tríada, que é testemunha, faz uma experiência de felicidade que supera o desencanto sofrido. O tempo impõe as suas regras e a opção de silêncio sai reforçada até que aconteça a ressurreição. Então surgirá o júbilo pascal que deve ser proclamado até aos confins do mundo.
Escutar Jesus, eis a ordem do Pai que tinha falado muitas vezes. Agora é o seu Filho muito amado que tem a Palavra ou melhor é a Palavra de Deus. Segundo a Bíblia, escutar não é apenas prestar atenção ou exercer uma actividade auditiva que facilita a compreensão intelectual do que é dito. É mais, pois exige a aceitação da mensagem, a atitude de quem deseja ser coerente e viver em sintonia, a decisão de lhe ser fiel.
“Escutar o Filho” significa assumir os seus sentimentos filiais para com Deus Pai e fraternos para com os irmãos na fé e na humanidade. Significa abrir o coração às dimensões do seu amor e optar por aqueles a quem ele dá preferência. Significa ter como meta da vida o serviço ao reino que ele nos confia. Significa obedecer-lhe, pois este acto humilde constitui a verdadeira grandeza humana.
Escutar a Deus é ouvir o grito dos empobrecidos e desviar-se das sentenças “loucas” dos que persistem em manter uma cultura de morte, uma ordem social e económica injusta e ofensiva, uma religião de conforto individualista e “descafeinada”.
Tal como outrora, o coração humano tem de ser inteligente e sábio, de vencer o embotamento a que está sujeito por tantas vozes tonitruantes de quem faz a opinião publicada e organiza a sedutora publicidade, de se pôr a caminho e ver com um olhar novo a realidade da planície, da vida de tantos milhões que, à maneira de Lázaro, jazem às portas dos enriquecidos, esperando algumas migalhas das suas requintadas mesas.
Jesus usa uma pedagogia que a Igreja .aconselha, sobretudo no tempo quaresmal: distanciar-se para estar mais próximo, fazer silêncio para melhor poder escutar, subir e contemplar a verdadeira grandeza humana para descer rapidamente e “arregaçar as mangas” em benefício dos que veem espezinhada a sua dignidade, privar-se voluntariamente do que dá conforto para estar mais disponível e ter bens para partilhar, saborear desde já a alegria que a cruz do sofrimento por amor comporta em si mesma e torna contagiante.