Um texto de Maria Donzília Almeida
Menino Tonecas - séc XXI
Foi caloroso aquele aperto de mão! Duas mãos de texturas opostas: uma de pele macia, bem cuidada, unhas tratadas, a outra áspera do trabalho árduo e cheia de calosidades.
O “Menino Tonecas”, como fora, carinhosamente, apelidado pelos filhos e netos, voltara à escola. De mochila às costas, nos finais da sua década de sessenta, há meia dúzia de anos atrás. O bichinho da aprendizagem, no gosto pelo saber, dificultado pelas vicissitudes da vida, voltara a reacender-se e lá aparecera, nas fileiras da frente. Apareceram-lhe professores mais novos, mais uns do que os outros, incluindo uma teacher, como ele pronunciava, que teve a veleidade de querer ensinar-lhe uma língua estrangeira! Apesar da repetição do velho provérbio que, eufemisticamente transcrevo: “A pessoas velhas não se ensina línguas!”, o Sr JC, não se amedrontava com o vaticínio. Já Camões dizia: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e hoje, até se recomenda o estudo duma língua estrangeira, na passagem da vida ativa, para a reforma. Dizem ser uma boa forma de manter o cérebro, em funcionamento e assim afugentar um alemão, pronto a atacar os mais incautos e sedentários. Não me refiro ao tirano Hitler, que já está a fazer tijolo, há muito, mas a um seu conterrâneo, que lhe herdou a virulência, o tão temível, Alois Alzheimer, nascido em 1906. Do Alemão, basta-me a língua, para satisfazer a minha sede de conhecimento! Já marquei encontro, com a língua de Dante, que sempre me fascinou pela sua musicalidade!
Todos os dias, era o primeiro a chegar, à Escola, onde decorria o Curso de Formação de Adultos, com o material escolar, bem aconchegado na mochila, não fosse incorrer numa falta de material! Os professores são tão mauzinhos!!! Será que estão, sempre, à espera que os alunos transgridam, para lhes aplicarem a “multa”? Até parecem os funcionários da MoveAveiro, que enxameiam pelas artérias da cidade, na esperança de engordarem o seu pecúlio diário! O desfalque da minha coleção de canetas, gravadas, lá está, a atestar o contrário!
A sua bike era a companheira inseparável, nas deslocações por terras da Gafanha.
As aulas decorriam, em diálogo franco. Havia debate de ideias e o sr JC envolvia-se, acaloradamente, na discussão dos temas tratados. Às vezes, até discutia com a “Setora” de Matemática, pois tinha um bom raciocínio lógico e argúcia de pensamento. Com a teacher, a relação era mais amistosa.....ainda não possuía o vocabulário suficiente, as armas... para esgrimir ideias!!! Concluiu, com aproveitamento e regozijo, para gáudio de todos, o curso frequentado.
A partir daí, desse relacionamento pedagógico, aquele aluno veterano, tornou-se o podador, oficial, do pomar da teacher. Todos os anos, no inverno, vem podar as árvores, aquelas que vão resistindo às intempéries da vida. Com a sabedoria delicada das suas mãos experientes, corta aqui, orienta o bardo, acolá, amarra a vinha, enfim, prepara as árvores para uma abundante colheita, na estação própria. Não sei que jeito ele tem nas mãos, que conhecimento está inscrito, na ponta dos seus dedos, que arte é esta de podar. Arte bem apreciada, pois houve, até, um seu professor, com formação em História de Arte, que despendeu uma manhã inteirinha, do seu tempo de folga, a acompanhar o sr JC, numa concreta demonstração da arte de podar.
Aquele aperto de mão, atrás referido, foi o momento em que a teacher quis fazer o acerto de contas. Lido o bilhete deixado, após o trabalho efetuado, ficara explícito que o podador trabalhara “n” horas e 20 m, mas apenas se cobrava de “n” horas. Decidindo eu fazer o arredondamento por cima, apresentei o montante correspondente.
Quase se empertigou o Sr JC, alegando que tinha sido aquele, o tempo registado, por cronómetro e, por conseguinte, não queria nem mais um cêntimo!
Tive que recorrer a uma argumentação ad hoc: - Fica assim, Sr JC, sabe que nunca fui forte, em contas! Este é o arredondamento que sei fazer!!! Havia um fundo de verdade nesta afirmação, já que nunca fui fã da Matemática. Mas, apesar desse meu handicap, devo esclarecer que nunca me perdi na aritmética da vida!
Não sei se ensinei alguma coisa, a este aluno, não sei se as aulas que lhe dei, reverteram de alguma forma, para o seu enriquecimento pessoal, terá de ser ele a fazer o cômputo final, mas dele aprendi, com certeza, uma grande lição: de tenacidade, perseverança e uma grande honestidade. Valores que muito prezo!
Valores de um homem de cepa rija!