Um texto de António Marcelino
.
A Liturgia era o tema mais refletido à data do Concilio. A lógica da renovação recomendava que os primeiros temas a debater fossem a Igreja e a Revelação Divina. Mas não foi possível começar por aí, porque logo se viu que eram temas em que havia divergências no modo de os conceber e de os apresentar a debate na sala conciliar.
Antes do Concilio deram-se passos importantes no campo da liturgia. Entre outros: Pio X restaurou a música sacra, nomeadamente, o canto gregoriano (1903); fundou-se o Centro de Pastoral Litúrgica (1945) em França com a revista “La Maison de Dieu”; Pio XII publicou a “Mediator Dei” (1947) e restaurou a vigília pascal e a missa vespertina, mitigou o jejum eucarístico, permitiu a língua vulgar em partes dos sacramentos e sacramentais; o movimento litúrgico, iniciado pelo beneditino francês D. Gueranger, fundador da abadia de Solesmes, estendeu-se pela Europa a vários mosteiros beneditinos; de 1950 a 1957, realizaram-se sete encontros internacionais de liturgia, com realce para o I Congresso Internacional de Liturgia em Assis (1956). A renovação chegou a Portugal por D. António Coelho, que havia restaurado o mosteiro beneditino de Singeverga e fez dele uma escola litúrgica de influência, pela sua prática e publicações. O Seminário de Cristo Rei (Olivais, Lisboa) com o seu reitor, Monsenhor Pereira do Reis, teve nas décadas de quarenta e cinquenta um papel preponderante na criação de uma nova mentalidade e prática litúrgica, através dos novos padres que ali estudaram e que difundiram nas suas dioceses um espírito litúrgico, novo e aberto.
O Concílio abriu, solenemente, no dia 11 de outubro de 1962, e ocupou-se, de imediato, das eleições para as diversas comissões. Estas, porém, não se concluíram sem que chegassem os bispos das zonas mais distantes e se ambientassem, de modo a serem mais objetivas as suas escolhas. A demora não agradou aos mais apressados, mas a verdade é que só no dia 22 de outubro começou a reflexão pública do esquema da Liturgia. Foi bom ter começado por um esquema pouco polémico e fundamental na vida da Igreja. Assim o ordenou João XXIII. Um tema mais amadurecido serviu para os bispos ensaiarem um novo estilo de colegialidade.
O esquema apresentado pela comissão preparatória não ofereceu grande dificuldade. A dimensão pastoral, centralizada em Cristo e nos objetivos do Concílio, tal como surge logo nos primeiros números da Constituição, era muito clara. Pôs-se de lado a tónica rubricista de documentos anteriores e logo se aponta a Liturgia como “cume e fonte” da vida da Igreja, pois que nela tudo conduz para o louvor a Deus e tudo se alimenta desse louvor. Esta realidade tem o seu sentido pleno na celebração da Eucaristia, acontecimento pascal por excelência e essencial da vida da Igreja.
A Liturgia não esgota a ação da Igreja. É na proclamação da Palavra de Deus que leva ao conhecimento de Cristo, à conversão evangélica e à realização da Obra de salvação, que a Igreja tem a sua missão permanente, e será sempre, pela Palavra, que se chega ao louvor e à celebração frutuosa. Torna-se indispensável ler, refletir e assimilar os primeiros 13 números da Constituição para que se compreenda o alcance deste documento e não se caia na tentação dos aspetos menos importantes da celebração. A beleza exterior e a solenidade das celebrações, a que muitos prestam especial atenção, podem denunciar, por vezes, desatenção ao essencial. Nesta tentação se caiu a seguir ao Concílio, com o desvio para inovações, que mais partiam do entusiasmo da imaginação do que da compreensão dos objetivos fundamentais da Liturgia.
Os aspetos que logo provocaram mudanças como a língua vernácula, o espaço da celebração com especial atenção ao altar, os novos ministérios ligados ao acto celebrativo, e outros, estão sempre orientados para o valor pastoral da participação
consciente da assembleia no ato celebrativo.
A celebração da Eucaristia estava ainda muito marcada pelo clericalismo. O padre era praticamente tudo, e ocupou, durante séculos, uma primazia que não dava lugar a outros na área do altar. Compreende-se, assim, o entusiasmo como, em toda a Igreja, foi recebida e aplicada a reforma litúrgica, proposta pelo Vaticano II. Refletiremos aspetos importantes da Constituição, que, 50 anos depois, se tornam de novo atuais.