Um texto de Anselmo Borges
no DN
Quatro momentos de uma reflexão sobre Deus, o Homem, o niilismo e a pergunta final.
1. Conta-se que uma vez alguém se aproximou de Buda e lhe perguntou: "Deus existe?" Buda respondeu: "Sim". Depois de comer, veio outra pessoa, que queria saber: "Deus existe?" E Buda disse: "Não, não existe." No final da tarde, uma terceira pessoa veio com a mesma pergunta: "Deus existe?" "Terás de decidir isso tu próprio", respondeu Buda. "Mestre, que absurdo!", disse um dos seus discípulos. "Como podes dar respostas diferentes à mesma pergunta?" "Porque são pessoas diferentes", res- pondeu o Buda, o Iluminado. "E cada uma delas aproximar-se-á de Deus à sua maneira: através da certeza, da negação e da dúvida."
2. No ano de 1796, Jean Paul escreveu um dos textos mais sublimes e ao mesmo tempo mais terríveis da grande literatura alemã: Rede des toten Christus vom Welgebäude herab, dass kein Gott sei (Discurso do Cristo morto, desde o cume do mundo, sobre a não existência de Deus).
Nele, o grande escritor descreve um sonho. Pela meia noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição. É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: 'Cristo, não há Deus?' Ele respondeu: 'Não, não há Deus.' Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: 'Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: 'Pai, onde estás?' Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa". Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado "com uma órbita ocular vazia e sem fundo, e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se". O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: 'Jesus, não temos Pai?' E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: 'Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai'. "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há--de poder ser também o seu próprio exterminador?"
Para Jean Paul, a morte de Deus não é ainda um destino espiritual inevitável, mas apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora, contra a qual quer prevenir. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus - e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".
3. Um século depois (1882), o louco de Nietzsche proclamou a morte de Deus: "O louco saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. 'Quem vos vai dizer o que é feito de Deus sou eu', gritou! "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu!"
"Nunca existiu acto mais grandioso." Mas, ao mesmo tempo, Nietzsche não se mostra completamente eufórico. "Para onde vamos nós, agora? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?"
4. O filósofo Gilles Lipovetsky escreveu, comentando, que Deus morreu e os homens não estão preocupados com isso. Mas outro filósofo, Leszek Kolakowski, disse que desde então nunca mais houve ateus serenos.
Lá está, pelo menos, a pergunta dos versos de H. Heine: "E continuamos perguntando,/uma e outra vez,/até que um punhado de terra/nos cale a boca./Mas isto é uma resposta?"