Relação com a cultura
«obriga a Igreja a sair para a rua»
Às vezes basta uma palavra: Deus.
E ouço a música, pinto o inferno.
É uma espécie de inocência ardente, um modo de ir para
longe.
Sou elementar, anjos são os primeiros nomes.
(Herberto Helder)
Não é fácil tentar responder à questão sobre o que é mais
importante (criar, manter, repensar) na relação da Igreja com a cultura. Por um
lado, há uma tendência para centrar a questão não na Igreja mas na religião;
por outro, a definição de cultura é tão ampla, que se fica sempre aquém (como
dizia Agostinho da Silva, até “um pastel de bacalhau é cultura”).
Certo é que a ligação entre religião e cultura é tão forte
que muitos autores ou mal as distinguem ou fazem depender a qualidade de uma da
qualidade da outra - por exemplo, para Maria Zambrano, “uma cultura depende da
qualidade dos seus deuses” e, para T. S. Eliot, “nenhuma cultura pode aparecer
ou desenvolver-se exceto em relação com uma religião”. De facto, mais do que
apenas uma herança, o Cristianismo, ao longo da História, tem sido uma matriz
inspiradora da arte e da cultura em geral. Desde logo, na sua génese, há uma
cumplicidade, um “húmus comum”, entre o Cristianismo e a Cultura Clássica.
Ainda que com diferentes conceções do Homem, de Deus e da relação entre ambos,
“conhece-te a ti mesmo” tanto proclamou Sócrates como proclama o Novo
Testamento.
Em certa medida, religião e cultura têm em comum
constituírem processos de «autolibertação progressiva do homem», através dos
quais «o homem descobre e prova um novo poder: o poder de edificar um mundo
'ideal'» (E. Cassirer). Sendo certo que, no que concerne à religião, há um
apelo à santidade, que não será tão manifesto na cultura, é também verdade que
ambas procuram (e nos ensinam) a lançar outro olhar sobre o mundo e nós
próprios.
Regressando à questão sobre o que é mais importante (criar,
manter, repensar) na relação entre a Igreja e a Cultura:
1) É fundamental manter o interesse e o diálogo entre a
Igreja e a Cultura, sabendo que essa relação obriga a Igreja a “sair para a
rua”, a “estar entre gente”, a valorizar o pluralismo cultural, a expor-se, a reinventar
os modos e, portanto, a correr riscos. Claro está, evitando o relativismo, o
consumismo cultural ou ter de pedir desculpa pela existência de Deus ou pelos
princípios que defende e a definem.
2) A repensar haverá (hoje e sempre) o modo como o esforço
de abertura e proximidade se processa e exprime. Exige-se à Igreja lastro,
maturidade, precisão. Alçada Batista, no seu livro “Peregrinação Interior”, faz
um alerta que continua válido: «À preocupação de reter a religião fora do mundo
e da vida sucedeu o oportunismo religioso de 'batizar tudo e à pressa' (…).
Esta reação (…) exprimiu-se no quotidiano religioso por manifestações imaturas
e superficiais que não vêm de modo nenhum resolver a problemática profunda que
pôs em crise a igreja tradicional. Não me parece que missas yé-yés, (…) as
'espertezas' pastorais, os movimentos ditos de vanguarda, uma santa alegria
pateta, um otimismo infantil e quase enternecedor, venham solucionar um
problema que continua em aberto a reclamar uma solução de inteligência e de
verdade. (…) Isto só vem revelar, a meu ver, a extrema debilidade das nossas
infraestruturas religiosas, nos seus aspetos intelectuais, espirituais, éticos
e da própria sensibilidade. Porque uma coisa é a nossa predisposição (…) para a
abertura aos outros, para a magna carta da coexistência, e outra, muito
diferente, é a exigência que devemos manter no conteúdo da Fé (…). Uma coisa é
a coexistência, a tolerância, a compreensão (…), outra é a preocupação simples
de integrar tudo o que está na moda, sem qualquer juízo crítico (…).»
3) Por último, o que poderá ser importante criar na relação
entre a Igreja e a Cultura? A Igreja, como espaço de amor e afeto, de promoção
da pessoa e dos direitos humanos, e de busca da beleza, tem nos Evangelhos um
ponto de apoio e na Cultura uma alavanca extraordinária (apesar da sua
secularização). Daí a importância da pastoral da cultura - dela se espera «uma
espécie de inocência ardente, um modo de ir para longe.»
Este depoimento integra a edição de novembro de 2011 do
"Observatório da Cultura" (n.º 16). Leia mais respostas à pergunta.
João Wengorovius
Meneses,
Diretor de Ação Social, Educação, Juventude e Desporto