Romance, ciência, história e fé
António Marcelino
Conhecemos a história do sapateiro que falava de tudo e que, com este modo de agir, dizia, por vezes, coisas menos certas, senão mesmo disparates. Até que alguém lhe disse que se limitasse ao que sabia, sintetizando o conselho com uma recomendação conhecida: “Não vá o sapateiro além do chinelo”. Com frequência, hoje, um tempo em que a liberdade de opinar é direito de todos, vemos coisas que fazem lembrar a história do sapateiro sentenciador. Facilmente, se vê gente a pronunciar-se, com demasiada certeza, sobre coisas que ignora ou de que sabe menos.
Não li nenhum dos livros de José Rodrigues dos Santos. Nem espero ler “O Último Segredo”, agora publicado. Pela simples razão que, tendo livros e revistas de meu interesse e necessidade a aguardar leitura, isso me obriga a estabelecer prioridades. Por outro lado, não me soa bem que um jornalista romancista, pode ele ser, como tal, muito famoso, vender muito e até publicar em várias línguas, apresentar mais um romance, assim anunciado, um livro de ficção, portanto, como obra de investigação, ciência e história, com pronúncia sobre aspectos bíblicos para o autor desconhecidos, mas tidos como verdade que propõe. Confessa que no escrito está misturada a ficção com a não ficção. Pois. E onde acaba uma e começa outra? Que critérios tem o leitor comum para discernir?
A publicação do livro foi precedida, como era de esperar, de um marketing bem urdido, com os maiores favores da comunicação social. Jornais, revistas, televisão, tudo, antes e depois, como grande acontecimento da semana. Aconteceu a mesma montagem, há anos, com o “Código Da Vinci”, de Dan Brown, antes e depois da sua publicação. De tão famoso para os interessados, autor e editora, era quase pecado não o ler. Já passou a uma simples e triste recordação, como produto de uma moda que, depressa, perde cotação e mercado.
Num mundo em que o sobrenatural e o simplesmente religioso incomodam, há sempre público para ler as “novidades prometidas”, mormente se tocam aspectos fundamentais de Jesus Cristo, da Igreja, do cristianismo em geral. Anunciou-se em grandes títulos que se trata de um livro que aponta fraudes da Bíblia, que o Jesus Cristo dos Evangelhos tem pouco a ver com o Jesus Cristo histórico, que com este livro não se pretende atacar a Igreja, mas apenas abrir caminho para que o leitor seja ele mesmo investigador… Rodrigues do Santos, até como jornalista na televisão, aparece como um lutador nervoso que, a golpes de vontade, quer levar tudo à frente. Procurou agora autoridade no que escreve, dizendo que foi à Terra Santa para ver localmente, consultou livros sem conta, leu autores de todas as correntes. Não diz, porém, se leu estudos sérios das últimas décadas de grandes biblistas, protestantes e católicos, se tomou consciência do valor reconhecido da Escola Bíblica de Jerusalém, se compulsou escritos bíblicos em hebraico, aramaico e grego, se investigou, paciente e longamente, se respeitou a crítica textual, sem a qual nada de sério se faz em estudos bíblicos.
Jesus Cristo, na sua Pessoa e na fé dos crentes, não tem nada a perder com mais este romance. Nem passa a ser um Jesus Cristo diferente daquele que inspira o seu seguimento, até às últimas consequências, de milhões de cristãos, ao longo de dois mil anos. Renan e seus sequazes já, séculos atrás, tentaram um outro Cristo, de traça apenas humana. Bastava negar a sua ressurreição e logo ficava em causa a sua divindade.
A própria Igreja, nas diversas confissões cristãs, tem sido pioneira nos estudos bíblicos, sempre complexos, porque envolvem um trabalho sério e fundamentado, que não se faz sem aturados e longos estudos de outras ciências, como a paleografia, a arqueologia, a história comparada. Por isso, também ela nada teme, porque nada esconde, e tem mesmo expurgado, com rigor científico, elementos introduzidos ao longo de séculos, fruto de preocupações espirituais explicáveis, de uma melhor e mais acessível compreensão do texto bíblico, e até, de uma apropriação indevida do mesmo, por parte de interesses de vária ordem. Porém, elementos que, segundo as conclusões científicas nunca puseram em causa o essencial da mensagem bíblica. A Bíblia, escrita ao longo de séculos, não é um livro científico, como científico tem de ser agora o seu estudo, por perda dos originais, por se tratar, em muitos dos seus livros, de uma narração popular, com géneros literários diversos, ligados, obviamente, às culturas locais e à história de um povo, no meio de outros povos com história e cultura próprias.
Não pretendo julgar o autor de “ O Último Segredo”, nem fazer sobre ele e o seu romance qualquer juízo de intenção. Respeito, mas não me coíbo de escrever sobre o assunto, sem intuitos polémicos e sem pensar em lhe roubar leitores, que muitos deles estão sempre garantidos, e outros, sempre curiosos, sem critérios, não vão deixar de procurar as “novidades” do romance. Já assim aconteceu com “O Código Da Vinci”, leitura de férias de muita gente. Devo dizer que também não o li.
Continuo a ler, com interesse e proveito “Jesus de Nazaré”, de Bento XVI. Nada vejo nele de livro apologético, como aduz José Rodrigues dos Santos para não o ter consultado, mas como uma grande e fundamentada experiência de fé.
Todo o ambiente que nos envolve, ao reflectir estes temas, tem, de facto, a ver com o dom da fé, pessoal e comunitária, enraizada e esclarecida. Esta a grande interpelação que hoje se faz aos cristãos e às comunidades cristãs, cada dia convidados a passar de uma fé tradicional passiva, a uma fé motivada e consequente na vida. Espero que o Ano da Fé, agora anunciado, ajude, com base na Palavra bíblica, este objectivo, que se tornou urgente em tempo marcado por um laicismo militante, aguerrido, nem sempre sério.