O funcionário cansado
A noite trocou-me
os sonhos e as mãos
dispersou-me os
amigos
tenho o coração
confundido e a rua é estreita
estreita em cada
passo
e as casas
engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só
num quarto só
com os sonhos
trocados
com toda a vida às
avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário
triste
a minha alma não
acompanha a minha mão
Débito e Crédito
Débito e Crédito
a minha alma não
dança com os números
tento escondê-la
envergonhado
o chefe apanhou-me
com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na
minha conta de empregado
Sou um funcionário
cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto
orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto
irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas
palavras generosas
Flor rapariga amigo
menino
irmão beijo
namorada
mãe estrela música
São as palavras
cruzadas do meu sonho
palavras soterradas
na prisão da minha vida
isto todas as
noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
António Ramos Rosa,
in "Viagem através duma nebulosa", 1960