Reunir cerca de um milhão e meio de jovens de todo o mundo, festivos e ordeiros, que se mantiveram serenos durante uma forte tempestade, que ficaram em silêncio recolhido em momentos intensamente religiosos, é obra.
Dir-se-á que foram para conhecer novas terras e novas gentes, conviver, encontrar outras culturas. Pergunta-se: e que mal há nisso?, não é bom que convivam e aprendam o exercício de uma lição maior: o diálogo intercultural?
Deixo aí algumas notas, acompanhado, aqui e ali, do teólogo Xabier Pikaza.
1. É normal que o Papa, representando a unidade da Igreja, queira encontrar-se e dialogar com aqueles por quem é responsável na condução da fé e na dignidade, para animá-los e fortalecê-los.
2. Também a mim "me não parece ideal vir (de facto) como Chefe de Estado, sendo recebido como tal pelas autoridades máximas do Estado; deveria ter vindo como simples peregrino, em viagem 'privada', não oficial".
Qualquer cristão reflexivo terá já sido assaltado pela pergunta: como foi possível o movimento iniciado por Jesus, crucificado por uma coligação de interesses religiosos e políticos de Jerusalém e Roma, ter chegado até um Papa Chefe de Estado?
Mas, dada esta herança histórica, que seja bem utilizada, por exemplo, para defender de modo eficaz os mais pobres entre os pobres. Suponhamos que o Papa, em termos a definir, desembarcava na Somália para um apelo ao mundo e alívio daquela desgraça inominável?
3. Nas visitas oficiais do Papa, são inevitáveis aproveitamentos político-partidários e ambiguidades e até equívocos, que podem prejudicar a laicidade do Estado.
De facto, a visita não foi financiada pelo Estado e é preciso reconhecer que economicamente a Espanha não perdeu.
Apesar disso, continua Pikaza, "penso que do ponto de vista cristão é pouco claro que grande parte dos gastos sejam financiados por uma 'cúpula económica' de tipo capitalista. Trata-se de algo legal, mas cristãmente perigoso, pois coloca a Igreja nas mãos do grande capital, dificultando muito a sua tarefa de denúncia profética, na linha de Jesus".
4. As manifestações dos cidadãos que não estão de acordo são um direito indiscutível. Mas, não sendo o Estado espanhol um Estado confessional, deve respeitar todos os cultos e é normal que ceda ruas e praças para reuniões, no caso, de perto de um milhão e meio de cidadãos.
Os grupos laicos representam uma "racionalidade universal", não religiosa. Na medida em que Bento XVI se tem afirmado constantemente empenhado no diálogo com a razão, prestam-lhe um favor ao dizer-lhe que é possível uma racionalidade não religiosa. "Assim, ao ver as imagens de alguns 'indignados racionais', pensei que me parecem mais próximos do pensamento de Bento XVI do que muitos católicos confessionais de pouca racionalidade." Dito isto, não se pode deixar de lamentar o pouco civismo que alguns mostraram, com gestos e manifestações de paródia insultuosa. Temos todos de participar numa "razão respeitadora, tolerante, universal".
5. Espera-se que, no quadro de uma Igreja que se quer plural e dialogante, o Vaticano não ouça só uma parte da Igreja espanhola, a dos inquisidores.
6. Algumas expressões marcantes do Papa: "A verdade só pode ser acolhida num clima de liberdade. A verdade busca por si o diálogo: escutar e entender o outro." "Não somos fruto do acaso nem da irracionalidade; na origem da nossa existência, há um projecto de amor de Deus". "A nossa atenção desinteressada pelos doentes e aos desamparados será sempre um testemunho do rosto compassivo de Deus." "A economia não funciona só com regras mercantis, mas necessita da razão ética para estar ao serviço do homem." "Há muitos que, julgando-se deuses, desejariam decidir quem é digno de viver ou pode ser sacrificado." "Sabemos que, quando só a utilidade e o pragmatismo se erigem em critério principal, as perdas podem ser dramáticas."
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