Sobre a ordenação de mulheres
Anselmo Borges
Nas últimas duas semanas, a ordenação de mulheres alcançou
grande relevo nos media. Por causa de declarações inesperadas do
cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Numa entrevista publicada no
Boletim da Ordem dos Advogados declarara que "teologicamente não há nenhum
obstáculo fundamental" à ordenação de mulheres. A recusa está baseada
apenas na tradição.
A declaração teve eco em importantes órgãos de informação
estrangeiros. Tanto mais quanto aparecia pouco tempo depois de um bispo
australiano ter sido demitido devido à mesma abordagem do tema, e o vaticanista
Andrea Tornelli fez notar que a declaração ia contra a doutrina afirmada por
João Paulo II e Bento XVI.
Como seria de prever, choveram os protestos, provindos,
segundo se diz, sobretudo do Opus Dei e do próprio Vaticano. As reacções,
algumas de "indignação", obrigaram o patriarca a um esclarecimento,
recuando. Nele, confessa a necessidade de "olhar para o tema com mais
cuidado", acrescentando: "Verifiquei que, sobretudo por não ter tido
na devida conta as últimas declarações do Magistério sobre o tema, dei azo a
essas reacções." E reproduz a carta Ordinatio Sacerdotalis, de João Paulo
II: "Declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a
ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada como
definitiva por todos os fiéis da Igreja."
Quando se pensa, vê-se aqui a tipificação do que é na Igreja
o respeito pelo direito de opinião e expressão. Depois, não se atende à vontade
de tantos bispos a quem não só não repugnaria como até gostariam de ordenar
mulheres. Ficou famosa a afirmação de D. Eurico Nogueira, então arcebispo de
Braga: "Gostava de ver uma mulher no meu lugar."
As mulheres têm motivos para estar zangadas com a Igreja,
que as discrimina. Jesus, porém, não só não as discriminou como foi um
autêntico revolucionário na sua dignificação, até ao escândalo: veja-se a
estranheza dos discípulos ao encontrar Jesus com a samaritana, que tudo tinha
contra si: mulher, estrangeira, herética, com o sexto marido. Condenou a
desigualdade de tratamento de homens e mulheres quanto ao divórcio. Fez-se
acompanhar - coisa inédita na época - por discípulos e discípulas. Acabou com o
tabu da impureza ritual. Estabeleceu relações de verdadeira amizade com
algumas. Maria Madalena constitui um caso especial nesta amizade: ela
acompanhou-o desde o início até à morte e foi ela que primeiro teve a intuição
e convicção de fé de que Jesus crucificado não fora entregue à morte, pois é o
Vivente em Deus.
Santo Agostinho, apesar da sua misogenia, declarou-a
apóstola dos apóstolos, devido ao seu papel fundamental na convocação dos
outros discípulos para a fé na Ressurreição. Aliás, já São Paulo na Carta ao
Romanos pede que saúdem Júnia, "apóstola exímia".
Evidentemente, os opositores vêm sempre com aquela dos Doze
Apóstolos, entre os quais não consta nenhuma mulher. Esquecem que na
instituição dos Doze se trata de uma acção simbólica, para indicar que começava
o novo povo de Deus. Como as mulheres e as crianças na altura não contavam, o
símbolo perderia a sua eficácia, se se falasse também de mulheres entre os
Doze.
E também se diz que na Última Ceia não houve mulheres. Ora,
esta afirmação é contestada por grandes exegetas. Depois, o famoso biblista
Herbert Haag, da Universidade de Tubinga, com quem tive o privilégio de privar,
ironizou: como eram só judeus os presentes, então a Igreja só devia ordenar
homens judeus.
Sobretudo: é sabido que as primeiras comunidades cristãs se
reuniam na casa de cristãos mais abastados, e quem presidia era o dono ou a
dona da casa. Então, se já foi possível mulheres presidirem à Eucaristia...
A questão tem, pois, de ser revista. Para não ferir este
princípio fundamental do Concílio Vaticano II: "Toda a forma de
discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão de sexo deve ser
vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino."
No DN
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