sábado, 2 de julho de 2011

A crise é imensa, e é sobretudo moral


A sociedade líquida

Anselmo Borges

Este nosso tempo é-o na perplexidade. Vejo muita gente angustiada com o que aí está e sobretudo com o que aí pode vir. De facto, ninguém reflexivo, que não tenha metido a massa encefálica no frigorífico, pode viver como se o amanhã não pudesse ser a hecatombe e o caos. Há épocas na História de relativo sossego, mas a nossa é de sobressalto. A crise é imensa, e é sobretudo moral. Crise de valores.
Três exemplos.

O ex-vice-presidente da Câmara do Porto Paulo Morais afirmou recentemente que "o centro de corrupção em Portugal tem sido a Assembleia da República". De facto, o Parlamento português "parece mais um verdadeiro escritório de representações, com membros da comissão de obras públicas que trabalham para construtores e da comissão de saúde que trabalham para laboratórios médicos". "A legislação vem dos grandes escritórios de advogados, que também ganham dinheiro com os pareceres que lhes pedem para interpretar essas mesmas leis e ainda ganham a vender às empresas os alçapões que deixaram na lei." "Os deputados estão ao serviço de quem os financiou e não de quem os elegeu."
Toda a gente ficou atónita, quando se soube que, no CEJ, os candidatos a magistrados e juízes tinham copiado no exame e que havia suspeitas de que teriam conhecido antecipadamente o seu enunciado.
Há casos de médicos com 80 e 90 anos e alguns até já mortos que continuaram a receitar medicamentos em 2010. Calcula-se que cerca de 40 por cento dos gastos do Estado com a comparticipação em medicamentos possa ser irregular.
E agora? Evidentemente, os crimes devem ser julgados. Mas é essencial compreender que a solução da nossa vida colectiva não pode ser entregue exclusivamente ao Direito Penal. Por duas razões fundamentais. Não é possível legislar sobre tudo e, depois, nesse quadro, seria necessário colocar um polícia junto de cada cidadão, mas, como os polícias também são cidadãos, ter-se-ia de pôr um polícia a guardar outro polícia e assim sucessivamente. Lá está Juvenal, que aqui já citei: "custos custodit nos; quis custodiet ipsos custodes?" (a guarda guarda-nos; quem guardará a guarda?).
Para dizer que a formação ética para os valores vinculativos (a honra, a virtude, a dignidade, o respeito, a lealdade, a solidariedade, a rectidão, a verdade...) é essencial.
Mas a questão é esta: quem formará para os valores? As famílias desestruturadas? As escolas sem norte e onde os professores lutam por um lugar de sobrevivência? A Igreja moralmente ferida? As televisões em guerra por audiências tolas?
Quando se instalou como valor primeiro o ter em vez do ser, começou a caminhada para o abismo. Por um lado, o ter; por outro, o individualismo.
O famoso sociólogo polaco Zygmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Leeds (Reino Unido), chamou a esta situação "modernidade líquida". As nossas sociedades são individualistas, e nelas são precários os laços tanto íntimos como sociais. Diz ele: "Ao contrário dos corpos sólidos, os líquidos não podem conservar a sua forma, quando pressionados por uma força exterior, por mínima que seja. Os laços entre as suas partículas são demasiado fracos para resistir. Ora, este é precisamente o traço mais marcante do tipo de coabitação humana característico da 'modernidade líquida'. Daí, a metáfora que proponho."
Neste quadro, percebe-se a dificuldade de hoje para assumir compromissos de longo termo, pois não se quer restringir a futura liberdade de escolha. Daí a tendência para que "todos os laços que se dão sejam fáceis de desfazer, que todos os compromissos sejam temporários, válidos apenas até 'nova ordem'".
Cá está a dificuldade para manter o amor e a moralidade. Por um lado, quer-se um "parceiro leal e dedicado", mas, por outro, "ninguém se quer comprometer". E o cumprimento dos deveres morais "é custoso, não é uma receita para uma vida fácil e sem preocupações, segundo as promessas da publicidade para os bens de consumo".

 No DN

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