sábado, 4 de junho de 2011

O ser humano é o ser da pergunta



A dúvida, a pergunta, 
o transcendente

Anselmo Borges

Há um texto de Joseph Ratzinger, em 1968, ainda só professor, que dá que pensar. "Não há fuga possível ao dilema do ser humano. Quem quiser escapar à incerteza da fé terá de experienciar a incerteza da descrença, que, por sua vez, nunca pode dizer com certeza definitiva se não é a fé que é a verdade. Ninguém pode tornar Deus e o seu Reino evidentes aos outros nem a si mesmo. Tanto o crente como o não crente, se não se ocultarem a si próprios e à verdade do seu ser, participam, cada um à sua maneira, na dúvida e na fé. Nenhum deles pode escapar completamente à dúvida, nenhum pode escapar completamente à fé; para um a fé torna-se presente contra a dúvida, para o outro mediante a dúvida e sob a forma da dúvida. É a figura fundamental do destino humano: só poder encontrar a definitividade da sua existência nesta rivalidade sem fim de dúvida e fé, perplexidade e certeza. Talvez assim precisamente, a dúvida, que impede um e outro de se fecharem em si mesmos, possa tornar-se o lugar da comunicação. Ela impede-os de se encerrarem totalmente em si próprios, abre o crente ao que duvida e o que duvida ao que tem fé; para um é a sua participação no destino do descrente, para o outro a forma como a fé, apesar de tudo, permanece um desafio."
O ser humano é, constitutivamente, o ser da pergunta, do perguntar ilimitadamente, pois, estando nós referidos ao não-dito e indizível, toda a resposta é ela própria perguntável. Assim, quando se pergunta pelo próprio perguntar, isto é, pela perguntabilidade, não é difícil concluir que, em última instância, toda a pergunta tem como termo último o Infinito, de tal modo que, se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento último da dignidade humana é neste estar referido estrutural do ser humano ao Infinito que reside: nessa referência constitutiva do homem à questão do Infinito, se se quiser, à questão de Deus, precisamente enquanto questão (independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o homem aparece como fim e já não como simples meio. De facto, o que é que há para lá do Infinito?
A crise do nosso tempo é uma crise económica, financeira, de valores, uma crise moral, crise política, local e global... Mas, se se reflectir sempre mais fundo, a raiz dessa crise é uma crise filosófica. Mais do que de respostas, do que o nosso mundo precisa é de não obturar a pergunta, a pergunta insconstruível, porque radicada e referida ao Ser. Sem essa pergunta, assistimos à morte do próprio homem.
A dúvida coloca-nos ao mesmo tempo para lá dos dogmatismos fundamentalistas e dos cepticismos niilistas, pois põe-nos em marcha, na pergunta radical, para a busca da verdade. Com o eclipse dessa pergunta, desaparece o sentido do mundo e da dignidade humana, pois a humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora. Infelizmente, talvez seja isso que realmente está a acontecer, como constatou já o marxista heterodoxo e ateu religioso Ernst Bloch: "Está a concretizar-se o que Nietzsche profetizou para o século XX: Vamos ao encontro de uma época de terrível miséria. Com subprodução de transcendência."
Acumulamos racionalidade científica e técnica. Mas, então, ainda falta responder ao essencial do humano. Um ser humano atento pode dar-se conta de que a reflexão consciente sobre o eu como centro reflexivo e sobre os objectos pressupõe a sua apreensão vivida, pré-reflexiva, num fundo de um Ser omnicompreensivo, metafenoménico e inabarcável, pois é ele que tudo abarca. Precisamente dessa experiência de fundo, ainda que vaga, nascem as diferentes interpretações, da poesia às metafísicas, da ciência às religiões. Afinal, a experiência humana é mais vasta do que pretende a ciência experimental. Por isso, escreve com razão o filósofo F. Copleston que talvez se possa inverter a famosa frase de Wit-tgenstein: "os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo", dizendo: "os limites do meu mundo significam os limites da minha linguagem", entendendo aqui por "meu mundo" a experiência que estou disposto a reconhecer: mais estreita ou mais vasta.

No DN

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