Andrés Torres Queiruga
Deus e o mal
Anselmo Borges
Penso que Andrés Torres Queiruga, da Universidade de Santiago de Compostela, é um dos mais vigorosos e penetrantes teólogos católicos vivos, numa ousadia única de colocar a fé cristã em confronto radical com a modernidade e vice-versa. Acaba de publicar em castelhano uma obra seriamente original sobre o tema em epígrafe: Repensar el mal, que obriga a pensar.
Lá está o famoso dilema de Epicuro: Ou Deus pôde evitar o mal e não quis; então, não é bom. Ou quis e não pôde; então, não é omnipotente. Ou quis e pôde; então, donde vem o mal?
São precisamente os pressupostos do dilema que o autor começa por desmontar, a partir de uma ponerologia (de ponerós, mau): tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus. De facto, o mal atinge a todos, crentes e não crentes, os próprios animais também sofrem. Todos passam por crises e doenças e todos morrem. E perguntamos: donde vem o mal?
Quando procuramos a raiz última do mal, encontramo-la na finitude. O mundo é finito e, por isso, há nele, inevitavelmente, mal: o finito não pode ser perfeito, pois tem falhas, carências, e nele haverá choques, pois, como escreveu Espinosa, "toda a determinação é negação".
A primeira coisa que, portanto, é preciso considerar é que o mundo produz mal, todo o mal tem origem no próprio mundo. Por isso, na peste negra, houve procissões; com o terramoto de Lisboa, pensou-se que Deus o tinha permitido. Agora, com o tsunami no Japão, dá-se uma explicação científica, e, com a sida, investiga-se nos laboratórios.
Dizer que Deus é omnipotente, infinitamente bom, que nos ama e que poderia acabar com o mal do mundo, criando-o perfeito, mas que não quer, é uma contradição. Se vemos uma mãe ao lado do filho torcendo-se de dor, sabemos que ela não pode evitá-la - se pudesse, não o permitiria. O que se passa é que, se não é possível um mundo perfeito, sem mal, não tem sentido perguntar por que é que Deus não fez um mundo perfeito. Não se diz que existe algo que Deus não pode fazer: simplesmente se nega uma contradição. Se o mundo não pode ser perfeito, não posso esperar que Deus o faça, não posso pretender que divida uma turma em três metades.
A pergunta é outra: se o mal é inevitável, por que é que Deus o criou? "Não posso responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena. Eu não sou pessimista: creio que vale a pena e que há um referendo na Humanidade: todos, no fundo, sabemos que vale a pena. Por isso, continuamos a trazer filhos ao mundo."
Aqui, começa a pisteodiceia (de pistis, fé: justificação da fé). Há diferentes pisteodiceias, pois todos têm de enfrentar-se com o mal e cada um tem a sua resposta para o problema. O crente religioso tem a sua: crê que Deus não teria criado o mundo, se de algum modo não fosse possível libertar--nos do mal. O que se passa é que o que não é possível num dado momento pode sê-lo mais tarde. Quem pode conceber-se a aparecer já adulto no mundo? A realidade é processual, e o crente em Deus como Amor e Anti-mal espera a salvação definitiva e plena para lá da morte.
Mas ergue-se uma objecção: depois da morte, não continuamos finitos? Confiamos em Deus e podemos mostrar, com razões, que a salvação eterna não é contraditória, mas possível.
Sim, a pessoa é um ser finito, mas com uma abertura infinita. Este é o mistério do Homem. Nunca estamos acabados, nenhum ser humano morre definitivamente feito. Não há nada finito que possa preencher a abertura humana, não há nada finito que possa realizar a nossa capacidade de conhecer e amar. Há aquele passo de Tristão e Isolda, na experiência amorosa, quando Tristão diz: "u és Tristão e eu sou Isolda". E Isolda: "tu és Isolda e eu sou Tristão". Esta reciprocidade no amor, que não anula a pessoa, porque quanto mais amas mais és, cria uma relação especial. Ora, esta é a possibilidade que se abre ao crente a partir da fé, apoiada em razões: "Deus pode entregar- -se-nos nesta abertura infinita, de tal modo que podemos dizer, como Tristão e Isolda, que somos Deus, que está em nós", desde sempre.
No DN