sábado, 16 de abril de 2011

Saberá Bento XVI o que se passa?

J. Ratzinger


Bento XVI 'versus' Joseph Ratzinger

Anselmo Borges

Um dia, João XXIII passou por um dos Colégios para estudantes nas Universidades Pontifícias, em Roma. Um deles terá ousado atirar-lhe: "Santidade, como é sentir-se o primeiro?" E o bom Papa João: "Está enganado. Pus-me a contá-los, e eu, lá no Vaticano, sou o quarto ou quinto."
Esta estória deve ter muito mais verdade do que se julga. De facto, essa coisa do Poder é muito complexa. Quem manda realmente? Com alguma sociologia das burocracias, alguns conhecimentos de História e do funcionamento da Cúria Romana, percebe-se as dificuldades que há, quando se quisesse reformar a Igreja.
Depois, há evolução no pensamento próprio. E nem tudo se diz a todos e em todos os contextos.
J. Ratzinger escreveu em 1968: "Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a autoridade eclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores do que a sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais do que a comodidade da sua própria carreira." Continuou a pensar assim enquanto Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé? O que pensará hoje?
Para repensar a descentralização da Igreja e abrir um debate sobre o primado papal, tendo como interlocutores os protestantes, ortodoxos e anglicanos, J. Ratzinger escreveu em 1971 que se deveria caminhar na direcção dos cinco patriarcados antigos (Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla), que, sob a presidência de um deles (o de Roma), asseguravam autonomia: "Olhando para o futuro, deveria constituir uma tarefa distinguir de novo mais claramente o verdadeiro ofício do sucessor de Pedro e o ofício patriarcal, e, se fosse necessário, criar novos patriarcados e desmembrá-los da Igreja latina. Isso quer dizer que uma união com a cristandade oriental não deveria mudar nada, mesmo nada, na sua vida eclesiástica concreta. As mudanças palpáveis poderiam ser estas: que na provisão de sedes episcopais se desse uma 'ratificação' comparável à permuta de cartas de comunhão na Igreja antiga; que houvesse de novo reuniões comuns em sínodos e concílios e de novo atravessasse as fronteiras do Oriente e do Ocidente a permuta de cartas ou documentos semelhantes ('encíclicas'); finalmente, que o bispo de Roma fosse outra vez nomeado no cânone da Missa e nas orações. De modo semelhante, poderia sem dúvida pensar-se numa forma especial da cristandade protestante dentro da unidade da Igreja universal; e, finalmente, deveria reflectir-se num futuro talvez não longínquo sobre se as Igrejas da Ásia e da África, à maneira das do Oriente, não poderão ou deverão oferecer a sua forma própria como patriarcados ou 'grandes Igrejas' independentes."
Quando ainda era só professor, Ratzinger também defendeu, com outros grandes teólogos, como Karl Rahner e Karl Lehman, a necessidade de debater o tema do celibato obrigatório, pois não é um dogma e há o perigo de assistir-se a uma deserção massiva de sacerdotes.
Como escrevi aqui, no meu entender, o último livro de Ratzinger/Bento XVI sobre Jesus de Nazaré tem como fio condutor estas palavras: "a Encarnação de Jesus ordena-se para o sacrifício de Si mesmo pelos homens, e este para a ressurreição; caso contrário, o cristianismo não seria verdadeiro." Julgo que esta afirmação tem de ser lida à luz de uma outra dele, quando professor: opondo-se à teologia da "satisfação" que situava a Cruz "no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido", Ratzinger rejeitou a noção de um Deus "cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa".
E dá liberdade para debater e divergir da sua obra. Pergunta-se: porque abriu então a Congregação para a Doutrina da Fé um processo à obra igualmente admirável sobre Jesus, de J. A. Pagola, "Jesus. Aproximação histórica", que vendeu 80.000 exemplares e está traduzida para várias línguas? Mas saberá Bento XVI o que se passa?

In DN

Sem comentários:

Enviar um comentário