J. Ratzinger
Bento XVI 'versus' Joseph Ratzinger
Anselmo Borges
Um dia, João XXIII passou por um dos Colégios para estudantes nas Universidades Pontifícias, em Roma. Um deles terá ousado atirar-lhe: "Santidade, como é sentir-se o primeiro?" E o bom Papa João: "Está enganado. Pus-me a contá-los, e eu, lá no Vaticano, sou o quarto ou quinto."
Um dia, João XXIII passou por um dos Colégios para estudantes nas Universidades Pontifícias, em Roma. Um deles terá ousado atirar-lhe: "Santidade, como é sentir-se o primeiro?" E o bom Papa João: "Está enganado. Pus-me a contá-los, e eu, lá no Vaticano, sou o quarto ou quinto."
Esta estória deve ter muito mais verdade do que se julga. De facto, essa coisa do Poder é muito complexa. Quem manda realmente? Com alguma sociologia das burocracias, alguns conhecimentos de História e do funcionamento da Cúria Romana, percebe-se as dificuldades que há, quando se quisesse reformar a Igreja.
J. Ratzinger escreveu em 1968: "Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a autoridade eclesiástica. O que faz falta na Igreja não são panegiristas da ordem estabelecida, mas homens cuja humildade e obediência não sejam menores do que a sua paixão pela verdade, e que amem a Igreja mais do que a comodidade da sua própria carreira." Continuou a pensar assim enquanto Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé? O que pensará hoje?
Para repensar a descentralização da Igreja e abrir um debate sobre o primado papal, tendo como interlocutores os protestantes, ortodoxos e anglicanos, J. Ratzinger escreveu em 1971 que se deveria caminhar na direcção dos cinco patriarcados antigos (Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Constantinopla), que, sob a presidência de um deles (o de Roma), asseguravam autonomia: "Olhando para o futuro, deveria constituir uma tarefa distinguir de novo mais claramente o verdadeiro ofício do sucessor de Pedro e o ofício patriarcal, e, se fosse necessário, criar novos patriarcados e desmembrá-los da Igreja latina. Isso quer dizer que uma união com a cristandade oriental não deveria mudar nada, mesmo nada, na sua vida eclesiástica concreta. As mudanças palpáveis poderiam ser estas: que na provisão de sedes episcopais se desse uma 'ratificação' comparável à permuta de cartas de comunhão na Igreja antiga; que houvesse de novo reuniões comuns em sínodos e concílios e de novo atravessasse as fronteiras do Oriente e do Ocidente a permuta de cartas ou documentos semelhantes ('encíclicas'); finalmente, que o bispo de Roma fosse outra vez nomeado no cânone da Missa e nas orações. De modo semelhante, poderia sem dúvida pensar-se numa forma especial da cristandade protestante dentro da unidade da Igreja universal; e, finalmente, deveria reflectir-se num futuro talvez não longínquo sobre se as Igrejas da Ásia e da África, à maneira das do Oriente, não poderão ou deverão oferecer a sua forma própria como patriarcados ou 'grandes Igrejas' independentes."
Quando ainda era só professor, Ratzinger também defendeu, com outros grandes teólogos, como Karl Rahner e Karl Lehman, a necessidade de debater o tema do celibato obrigatório, pois não é um dogma e há o perigo de assistir-se a uma deserção massiva de sacerdotes.
Como escrevi aqui, no meu entender, o último livro de Ratzinger/Bento XVI sobre Jesus de Nazaré tem como fio condutor estas palavras: "a Encarnação de Jesus ordena-se para o sacrifício de Si mesmo pelos homens, e este para a ressurreição; caso contrário, o cristianismo não seria verdadeiro." Julgo que esta afirmação tem de ser lida à luz de uma outra dele, quando professor: opondo-se à teologia da "satisfação" que situava a Cruz "no interior de um mecanismo de direito lesado e restabelecido", Ratzinger rejeitou a noção de um Deus "cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa".
E dá liberdade para debater e divergir da sua obra. Pergunta-se: porque abriu então a Congregação para a Doutrina da Fé um processo à obra igualmente admirável sobre Jesus, de J. A. Pagola, "Jesus. Aproximação histórica", que vendeu 80.000 exemplares e está traduzida para várias línguas? Mas saberá Bento XVI o que se passa?
In DN
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