Renegociar
José Tolentino Mendonça
É curioso verificar, mais uma vez, como nos tempos de crise, quando a estabilidade da sociedade no seu conjunto se problematiza, parece crescer a disponibilidade para escutar os percursos individuais. Os meios de comunicação partem à procura dos registos biográficos, dos olhares singulares, precisamente quando as evidências que sustentam a visão coletiva como que se esboroa. É um movimento instintivo, esta devolução da palavra aos indivíduos, e, na maior parte das vezes, chega-nos num registo aleatório, desprovido e sem especiais consequências. Contudo, o gesto deixa a sua impressão, nem que seja psicológica.
Penso que este regresso à “pequena história” e ao particular, esta atenção, de repente, prestada ao rosto de um sujeito na sua solidão ou no seu desejo, podem representar etapas importantes no processo de “renegociação” pelo qual toda a sociedade passa, e que não é apenas renegociação financeira.
O relato da própria vida pode constituir um lugar de encontro (de reencontro) entre a vida pessoal e a sua inscrição no espaço sócio-histórico. Paul Ricoeur, por exemplo, ajudou-nos a ver como a narrativa biográfica instaura campos de renegociação e de reinvenção identitatária. Contar-se, relatar-se, narrar a vida do ponto de vista próprio não é um mero agenciamento de factos, mas sim um ato criativo que se pode investir de um grande alcance. A identidade narrativa constitutiva do sujeito permite não só apreendê-lo na mudança: favorece inclusive a irrupção da mudança. «Porque estamos no mundo e somos afetados por situações - escreve Ricoeur -, tentamos nele nos orientar por meio da compreensão e temos algo a dizer, uma experiência a levar à linguagem e a partilhar».
O regresso à “pequena história” que a crise, voluntária ou involuntariamente, gera, tem a vantagem de recordar a cada um de nós que somos os leitores e os escritores da nossa própria vida. Por isso, nem sempre é mau renegociar. Que é como quem diz, refigurar, transformar, converter.
Fonte: SNPC