O reino da irrazão
Anselmo Borges
O que São Basílio Magno (séc. IV) escreveu sobre a usura é temível: "Os cães, quando recebem algo, ficam mansos; mas o usurário, quando embolsa o seu dinheiro, irrita-se tremendamente. Não cessa de ladrar, pedindo sempre mais... Mal recebeu o dinheiro e já está a pedir o dinheiro do mês em curso. E este dinheiro emprestado gera mal atrás de mal, e assim até ao infinito." Por isso, o Concílio de Latrão, em 1179, proibiu aceitar esmolas dos usurários, admiti-los à comunhão e dar--lhes sepultura cristã.
Hoje a isto chama-se os mercados financeiros, com a sua lógica devoradoramente insaciável. Portugal sabe-o por experiência. Quem não viu veja e quem viu reveja Inside Job.
De qualquer modo, estamos na União Europeia e temos de honrar compromissos quanto ao défice e à dívida. O que aí vem é arrasador. Como foi possível ter-se chegado à beira deste abismo? Como escreveu Daniel Bessa, "o Estado português está há muito em processo de falência. A culpa é de todos nós, a começar por mim, que nunca o disse de forma audível, com esta clareza".
Em Portugal, deu-se o triunfo da irrazão. Ele foi a sementeira acéfala de instituições de ensino superior, com consequências desastrosas por décadas. Ele foi, sem respeito pela famosa "navalha de Ockam", a multiplicação dos entes sem necessidade: na Administração central, nas câmaras, nas juntas de freguesia, nos institutos públicos. Ele foi o encosto geral aos dinheiros públicos, que todos se habituaram a reclamar em todas as circunstâncias. Não se fez a transformação do aparelho produtivo para a competitividade. Destruiu-se a agricultura e as pescas. Numa euforia tola, foi o consumo esbanjador, que os bancos estimularam. Parte dos portugueses pensou que já não era preciso trabalhar. A corrupção banalizou-se. A Justiça quase faliu. Não há confiança nem horizonte de futuro.
Vêm aí eleições. Mais uma vez, o País encontra-se numa crise mortal. Esperar-se-ia, pois, o fim do reino da irrazão. Esperar-se-ia que as forças políticas pensassem, finalmente, mais no bem nacional do que nos interesses partidários e nas clientelas. Depois de tanta aldrabice, que dissessem a verdade, dura, crua, aos portugueses, para eles poderem saber onde realmente se encontram. Que às arruadas da campanha antepusessem a argumentação racional, serenamente e sem insultos. Que, no quadro da razão comunicativa, se entendessem para um consenso mínimo em temas fundamentais: Justiça, Educação, relançamento da Economia, Estado Social mínimo, reformas político-administrativas.
Há anos que se pede sacrifícios aos portugueses. Que se esclareça por uma vez a situação e que sacrifícios mais são necessários e até quando e para quê. Os portugueses ainda encontrarão forças para avançar, se houver argumentação racional e os sacrifícios forem equitativamente distribuídos. De contrário, se cairmos na bancarrota, se houver tumultos sociais em cadeia, se se começar a gritar que a democracia é pura demagogia, quem assume a responsabilidade histórica pela catástrofe?
Entretanto, em tempos de enormes dificuldades, será preciso continuar a contar com a justiça social e a generosidade solidária. Como escreveu o famoso dramaturgo Berthold Brecht, marxista e profundo conhecedor da Bíblia: "Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da rua vinte e seis com a Broadway,/nos meses de inverno, há um homem todas as noites/que, suplicando aos transeuntes,/ procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem.// Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./ Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, homem./Alguns seres humanos têm cama por uma noite,/durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Mas não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração."
Fonte: DN