D. Manuel Clemente e José Manuel Fernandes
Em tempo de escombros, houve “Diálogo na Cidade”, no Teatro Aveirense, na quinta-feira, 3 de fevereiro, à noite, com D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, e José Manuel Fernandes, antigo diretor do PÚBLICO. O diálogo foi promovido pela Comissão Diocesana da Cultura, com o apoio da Câmara Municipal de Aveiro.
«Vivemos tempos difíceis e estamos a entrar agora numa fase ainda mais difícil e complexa, com uma década perdida, mas olhamos para a frente e não vemos como sair deste ramerrame», afirmou José Manuel Fernandes a abrir o diálogo. E sobre os escombros, adiantou que eles são também morais, «porque as referências se perderam; há sinais positivos, como as manifestações organizadas através das redes sociais, mas é necessário criar esse tipo de movimentos». E logo adiantou que não vale a pena ficar a pensar nas «reivindicações ou que alguém (o Estado) trate desse problema», porque o mais importante é perguntar «o que podemos fazer para mudar».
D. Manuel Clemente frisou que «os escombros são económicos, culturais, restos de coisas, de referências», acrescentando que é difícil conversar. «Dizem-se umas coisas; saltita-se de um lado para o outro sem um fio coerente. Alguém dizia: “Eu cá não sei, mas digo que…” E sublinhou: «Há confusão de pensamento, perde-se o fio à meada por causa de uma retórica vazia feita de mil estratagemas e frases repetidas.»
O antigo diretor do PÚBLICO afirmou que «a democracia contribuiu para o crescimento económico e redistribuição dos recursos, mas pela primeira vez há uma geração que está a viver pior do que a anterior.» E com o desemprego, que afeta sobremaneira os jovens, estamos a contribuir para a criação de «uma geração posta de lado, porque os mais velhos taparam os empregos e os lugares nas chefias». Contudo, o Bispo do Porto afiançou que «houve uma mudança na relação com a liberdade, que passou a ser entendida como possibilidade de escolha». E explicou: «Até então a liberdade era essencialmente política, institucional. Nos anos 80 comecei a sentir algo de diferente: o choque do sentimento de liberdade individual com o institucional.»
D. Manuel Clemente denunciou que sobrevivem hoje os preconceitos oitocentistas que «reduziam a religião no espaço público», salientando que «somos temerosos em relação à presença da religião no espaço público».
José Manuel Fernandes referiu que há muitas razões para estarmos preocupados e inquietos, tanto mais quanto é certo que, «cada empréstimo [ao País], é mais uma cavadela no buraco em que vamos cair». Mas o Bispo do Porto adiantou que «há indícios de construção, gente que acorda, deteta, procura. Encontro muita gente disponível nas visitas pastorais, nas escolas, associações, IPSS… Voluntariado para criar e inovar. Há uma disponibilidade-base que é garantia de que as coisas se podem resolver».
Referindo-se aos tempos que vivemos, José Manuel Fernandes garante que é necessário «dar outros passos». «Não vai haver revolução, espero eu. Não vai haver um novo Salgueiro Maia porque seria muito mau sinal que uma coisa dessas pudesse acontecer.»
A finalizar, D. Manuel lembra que a história está cheia de exemplos do que deve ser a luta cívica, e considera que «as armas não são solução na evolução das sociedades». Recordou, então, figuras históricas que se notabilizaram pela participação em nome do bem comum. «No século XX houve muita gente que quis resolver as coisas de outra maneira e fazer guerras para acabar com guerras, que se saldaram em milhões de mortes. Não foi o que fez Mandela, Luther King ou Gandhy. Não são utopias. Estas coisas têm lugar e o lugar é o coração dos homens de boa vontade. É uma coisa bonita para acabar a noite.»
Fernando Martins