Dioceses velhas, dioceses novas, critérios conciliares
António Marcelino
O problema voltou à praça pública, onde a livre opinião tem lugar e sentido. Muitos dos interessados nem deram por isso, donde a crise em Portugal não ser apenas económica. O diário “i” de 24-25 de Dezembro último, publicou uma entrevista, com fotografia e chamada à primeira página, feita a D. Manuel Clemente, Bispo do Porto. O entrevistador, já lá para o fim, pergunta: “Continua a falar-se da possibilidade de dividir a diocese, que é a maior do país. Isso faria sentido?” D. Manuel respondeu: “Será muito difícil nos tempos próximos que aconteça, por causa do pouco clero que temos - somos 300 e tal sacerdotes. Se fossemos dividir ainda mais os poucos recursos que temos para criar os organismos centrais que cada nova diocese iria requerer, seria muito complicado”.
O Bispo do Porto é hoje o bispo português mais mediático e com maior audiência pública. A cada passo se fala dele e ele aparece a falar na rádio, na televisão, nos jornais, em congressos e simpósios, em conferências e encontros, sempre com microfones abertos e disponíveis. Por isso mesmo, ele não é, como homem da Igreja, uma voz qualquer. O que diz serve de critério para muita gente que o ouve, lê, segue, e forma, a partir daí, a sua ideia e imagem da Igreja. Ora, no apreço que a pessoa e o tema me merecem, fiquei perplexo com a resposta lida. A meu ver, perdeu-se uma ocasião propícia para que, em relação à hipótese de novas dioceses, se transmitissem critérios conciliares, válidos e actuais, em vez dos pobres critérios tradicionais, centrados apenas no clero, como se a caminhada de renovação da Igreja, Povo de Deus, não tivesse a orientá-la senão o horizonte clerical.
As dioceses portuguesas, criadas ou restauradas de 1918 a 1977 – Leiria, Vila Real, Aveiro, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo –, com mais ou menos padres no seu início, são hoje Igrejas com os problemas normais das outras dioceses, mas Igrejas vivas e criativas, que dificilmente o seriam se continuassem sob a tutela das grandes dioceses de que, em alguns casos, se separaram com problemas pelo meio.
“A diocese é a porção do Povo de Deus confiada a um bispo para a apascentar, com a cooperação do presbitério, de forma que unida ao seu Pastor e por ele congregada pelo Espírito Santo, pelo Evangelho e pela Eucaristia constitua um igreja particular, em que esteja verdadeiramente presente e operante a igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo” (Concílio Vaticano II, CD 11).
O foco conciliar aponta para o Povo Deus que deve ser apascentado, isto é, conhecido, amado, alimentado, defendido, educado na fé, congregado na Eucaristia, empenhado na missão, acolhido e reconhecido nos seus dons e carismas, aberto ao mundo e aos desafios que a sociedade e a cultura lhe põem, presente e actuante na comunidade humana como sinal do Reino. Esta é a missão, permanente e nem sempre fácil, do Bispo, ajudado por um presbitério unido, comprometido a tempo inteiro, aberto e testemunhante, pelos diáconos e, também, pelos consagrados e os leigos, homens e mulheres. Nesta perspectiva se deverá ver a necessidade de uma nova diocese, ou seja, quando aquela porção do Povo de Deus precisa de uma especial atenção, presença do Pastor e de uma cuidada resposta aos seus problemas concretos.
O Vaticano II, no Decreto sobre o Munus dos Bispos (CD 22), alarga e concretiza: “Para se conseguir a finalidade própria da diocese, é necessário que a natureza da Igreja se manifeste no Povo de Deus pertencente à mesma diocese, que os bispos possam cumprir eficazmente o seu ministério pastoral e, finalmente, que se atenda, o mais perfeitamente possível, à salvação do Povo de Deus. Isto exige por um lado, a conveniente circunscrição dos limites territoriais das dioceses e, por outro, uma distribuição racional dos clérigos e dos recursos em conformidade com as exigências do apostolado… Por conseguinte, no que diz respeito às fronteiras das dioceses, o Concílio declara que, na medida em que o bem das almas o exigir, se proceda quanto antes a uma revisão conveniente, mas prudente, dividindo, desmembrando ou unindo as dioceses, alterando-lhes os limites ou determinando local mais apto para as sés episcopais, ou ainda dando-lhes uma nova organização interna, sobretudo tratando-se de dioceses que abarcam grandes cidades”.
A revisão regular das estruturas pastorais da Igreja é um dever que não se pode adiar. As estruturas nascem ao serviço da vida. Passados tempos em que muita coisa mudou, mais a impedem que favorecem. A criatividade, a procura de caminhos e a inovação impõem-se cada vez mais. Por essa Europa fora não faltam exemplos corajosos de inovação, quer a partir das grandes diocese como Paris, Madrid, Barcelona, quer de pequenas dioceses desertificadas. Em Portugal, há muitos anos pouco ou nada acontece ou acontece sempre tardiamente. No caso de novas dioceses foi sempre difícil tocar ou tocou-se, com sofrimento e incompreensão, para alguns intervenientes no processo. No que se fez, há casos em que persistem erros difíceis de emendar, fruto de interesses criados, opiniões poderosas, passos mal pensados, precipitações lamentáveis. Dizia-me uma vez um bispo, a justificar-se, que todo o processo de criação de uma diocese devia partir das bases. Ao que eu ripostei: “E quando as bases são abafadas se dissentem das cúpulas?”
Ainda bem que D. Manuel Clemente trouxe o tema à praça pública, ainda que de raspão, dando-lhe um caminho estreito. É preciso ler a vida, que o Povo de Deus se manifeste e seja ouvido, se tenham em conta os critérios conciliares. Se assim for, os casos concretos terão outra luz, mais forte e determinante do que a dos simples clérigos, do cabido da catedral e dos bairrismos locais.