quarta-feira, 1 de setembro de 2010

É preocupante ver hoje crianças trocando o livro pelo telemóvel e pela playstation

Uma língua, várias línguas, sempre a mesma língua

Não vou ser mais um a opinar sobre o acordo ortográfico. Já nem sei como isso ficou, tantos foram os sábios e não sábios a pronunciarem-se sem se ouvirem uns aos outros.
Pensando nos diversos países onde o português é assumido como língua própria, aproveitei os dias de férias para ler escritores de vários deles. Li do moçambicano Mia Couto “A Varanda do Frangipani”, do angolano Pepetela “Parábola do Cágado Velho”, do brasileiro Jorge Amado “O País do Carnaval”. De alguns deles já havia lido outros escritos, nomeadamente de Mia Couto e de Jorge Amado. Pepetela só agora me foi possível lê-lo e vou continuar. A seguir, já esperam de Germano Almeida (Cabo Verde) “Os dois irmãos”, de Filinto de Barros (Guiné Bissau) “Kikia Matcho”, de Luis Cardoso (Timor) “Crónica de Uma Travessia”. Para confronto, reli também agora, de Alexandre Herculano, “A dama dos Pés de Cabra” do seu livro “Lendas e Narrativas”. Um prazer que compensa.


Para quem gosta de ler, sabe o valor da leitura e não quer deixar as férias a tresandar de vazio, de rotina e de banalidade, a leitura, mais do que um simples passatempo, é uma ocupação enriquecedora. Nem sequer dispendiosa, porque, em boa hora, vários jornais diários vêm distribuindo livros aos seus leitores, e permitem, gratuitamente ou a baixo custo, o acesso a escritores conhecidos e desconhecidos, portugueses e de outros países que não se leriam facilmente, sem esta oferta regular. Eu sou dos que aproveitam a dádiva ou a promoção.
É preocupante ver hoje crianças trocando o livro pelo telemóvel e pela playstation. E não o é menos ouvir dizer que o importante para triunfar não é tanto o saber ler… O facto de sermos o país com mais telemóveis e de disporem computadores os alunos do ensino básico, e até já os dos jardins-de-infância, faz cócegas ao nosso orgulho. As novas tecnologias, por si, e eu também não dispenso algumas, podem nem humanizar, nem enriquecer culturalmente, mas apenas, para quem as usa sem critérios, constituir um aumento das dependências evitáveis. Será que saber que a gente nova lê cada vez menos, pode tranquilizar quem manda, pais, professores e governantes? Será que menos escolas abertas no país, como luzes que se apagam em terras onde se soube criar o sol, se vai traduzir em maior acesso à cultura, mais amor à leitura e mais educação qualificada?
As leituras de férias permitiram-me reflectir sobre o défice cultural provocado pela ignorância, a importância da língua portuguesa, que integra diversas línguas, iguais mas diferentes, que a enriquecem como língua mãe, pela criatividade inovadora, o confronto de culturas, a capacidade descritiva e uma aprendizagem sem conta do muito que é bom saber. As palavras originais de cada país lusófono vão-se cruzando na narração com as que todos falamos, traduzem conceitos que as de cá não exprimiriam, seja dos países africanos, seja do imenso Brasil. Tudo isto vai passando, hoje como ontem, ao lado de gerações que começam. Deliciei-me a ler o “desconseguiram” de Pepetela e tantas outras expressões, criadas ou aconchegadas, agora mais conhecidas, por via de talentosos e desinibidos escritores lusófonos, não acomodados nem nas ideias, nem na língua, mas fiéis à sua pátria e ao viver e ao falar do seu povo. Herculano, o mestre, exímio burilador da língua portuguesa, que se lê sempre com gosto e proveito, também escreveu “descavalgou” e usou muitas outras palavras, que os sábios computadores, incluindo o Magalhães, horrorizados por classificarem de erros, logo sublinham a vermelho. Outra reflexão me surgiu ao ver em narrativas do viver concreto, o respeito pelas tradições, a consciência clara de que um povo sem referências ao seu passado ou não respeitando nem valorizando as que tem, é povo que anda à deriva e a tombar para um nada que nada diz. Pela literatura e pouco mais, vamos conhecendo da África e do Brasil o que séculos de presença nos ocultaram. Andar por lá, e eu também andei, sem olhos curiosos e de admiração, pode deixar-nos ignorantes, mesmo regressando a falar de tudo e de todos.
Acertar a ortografia pode ser importante, mas tornar apaixonadas as novas gerações pela sabedoria que a história nos lega, abrir-se a horizontes novos, dar-lhes critérios que lhe permitam na vida saber discernir, ajudá-las a emergir da banalidade reinante, mostrar-lhes a riqueza e o valor da leitura que traduz vida e saber, não é menos importante. E, certamente, é investimento com maior futuro.


In CV

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