AO QUE VIMOS...
A*Padre João Vieira Rezende
José Tavares Afonso e Cunha
Frei Silvino Teixeira
Maria Teresa Filipe Reigota
Maria Donzília de Jesus de Almeida
Oliveiros Alexandrino Ferreira Louro
Caríssima/o:
Se Deus quiser, e nos der vida e saúde, iremos percorrer o Quintal e partir daí para mais além até onde a memória o permitir. Falaremos quase só de plantas; e não sendo lavrador, biólogo, membro de associação ambientalista ou ligado a qualquer movimento da Terra, expresso já as minhas limitações e adianto que apenas pretendo reviver raízes, folhas, frutos e sementes do passado, na esperança de podermos rasgar leivas no futuro!
a. Falo do meu Quintal: já lá vão quase cinquenta anos de trabalhos canseirosos para que ao menos não falte a água a quem dela necessita; de vez em quando um corte parcimonioso, não se queixe a pobrezinha... Enfim, de cada planta guardo uma recordação, um sabor, um cheiro, uma arranhadela...
e. Saltarei até ao quintal-jardim da memória: será da Gafanha que vivi e nos mostrará a insustentabilidade de certos esquemas ditos ecológicos e de interesse local e regional...
i. Que nos oferecem as plantas? Ou que tirávamos para sobrevivermos?
o. Como todos temos um pouco de médico e de louco, as plantas alimentam essa nossa dimensão e invadem os nossos corpos nos chás e mezinhas que as nossas avós preparavam...
u. Nesta vogal guardarei o que for encontrando em poesias, romances, lendas, ...
Um exemplo de partida:
a. O nosso Quintal ali está à tua espera; claro, é diferente do tempo da minha Sogra que só ela o sabia cuidar como aprendera de seu Pai, o saudoso Manuel Passarinha, e de sua Mãe Mariana. Não havia palmo de terra que não se aproveitasse para dar cereal ou vegetal que se pusesse na panela ou fosse engordar a criação...
e. Ter quintal era privilégio; mas desde criança as nossas brincadeiras e malandrices giravam pelo quintal e arredores. E foi lá que aprendi com meu Pai – cheiros, ervas e flores! Também figos, uvas, laranjas, pêras e limões! Com que desvelo conversava com as árvores!
Recordo aquela vez em que a tosse de cão apertou e ele fez um melaço com as folhas da figueira da Índia! A colher levava à nossa boca bálsamo para a tosse... e estalo para a gulodice.
Foi o primeiro mestre.
Logo o chiar do carro de bois... Os lavradores nas terras da Borda dão lições de trabalho e de afinco mas é o seu gesto de lançar a semente e de cortar as raízes ao nabo que se fixam...
Na Escola é o Tio Vicente que nos interroga e deixa no ar um amor impossível que, pela vida fora, muitos amargos de boca tem provocado: o amor a uma árvore? A um quintal? À Natureza?
i. o. Nestes salto que não há planta...
u. O Tio Vicente interrogou-nos e curiosamente as dúvidas que foi plantando se mostram mais e mais pertinentes. Assim o conhecemos pela pena de Júlio Dinis:
«O HERBANÁRIO
—Tio Vicente, um objecto muito grave me obrigou a procurá-lo a estas horas.
— Ah! — disse o velho, sentando-se, em tom de gracejo. Adivinho a gravidade do caso. O filhito do boieiro, o teu afilhado predilecto, tem algum princípio de sarampo ou de garrotilho, e vens...
— Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor a esta casa e a este quintal?
O velho tornou-se imediatamente sério.
— Se lhe tenho amor?! Que pergunta!
—Tem?
— Nasci aqui, filha. — Custar-lhe-ia a...
— A quê?
E Madalena hesitava.
— Fala! — insistiu o velho, já inquieto.
— A separar-se dela?
O herbanário respondeu simplesmente:
— Ah! morreria!
Madalena fez um gesto de aflição.
Em Vicente crescia o desassossego.
— Mas... dize, Madalena: que significam essas palavras?
— E que...
— Explica-te! — exclamou o herbanário, quase imperiosamente.
— Ouça-me, tio Vicente; ouça-me, mas não se aflija. Eu vim de propósito para o prevenir. Mas, por amor de Deus, sossegue; se não, tira-me o ânimo de continuar.
— Que sossegue, e tu a atormentares-me com essas demoras!
— Perdoe... Fala-se em deitar abaixo estas árvores e esta casa, para...
O herbanário, de um ímpeto, pôs-se de pé. Figurou-se-lhe nos olhos um relâmpago terrível. Madalena calou-se, assustada.
— Deitar abaixo estas árvores e esta casa?! Quem?... Quem se atreve ? Pois que venham! Que venham!
Mas, reparando no terror que estava causando a Madalena, procurou reprimir-se e, com uma voz que ele se esforçava por tornar tranquila, continuou:
— Mas vejamos. Então querem, dizes tu... Fala, Lena, fala... Dize o que sabes. Quem é?... Para que fim? Pois quem pode lembrar-se de... Fala, bem vês que estou sossegado, filha.
— Há projecto de estrada...
— Ah! — disse Vicente, com um grito de raiva. — Não digas mais. Já sei — continuou com renascente exaltação. Já sei. Adivinho o resto. É teu pai que o determina; é teu pai que resolveu.
Madalena abaixou a cabeça com dolorosa expressão.
O furor do velho exaltou-se outra vez.
—Teu pai! Teu pai, Lena! Então esse homem jurou matar-me?
— Tio Vicente!
— Ele não sabe o que são para mim estas árvores e estas paredes ? Ele não sabe que a minha alma está nelas, presa a estas raízes, que com elas se despedaçará? Esse homem sem coração não vê que são estas as minhas afeições, as únicas ? a minha única família ? Ele, o companheiro dos meus primeiros anos! que, como eu, brincou à sombra dessas mesmas árvores e sob os olhares de meu pai, que também o abençoava, tão duro de coração se fez que, sem respeito por estas memórias todas, assim me quer separar do que me dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é teu pai esse homem, Lena!
— Por quem é, tio Vicente, ouça-me. Deixe-me dizer-lhe ao que vim, que talvez tudo se remedeie ainda.
— Sim, sim; tudo se remediará... com a minha morte. Talvez que ela seja útil a teu pai... Talvez precise dela.
— Oh! não creia, não creia!
— É duas vezes doloroso o golpe! Porque me separa do que amo deveras e por vir da mão de quem vem.»
In A Morgadinha dos Canaviais,
de JÚLIO DINIS, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho.
Se estiveres interessado nesta conversa, fico à tua espera com o portão do Quintal bem aberto, para irmos mais além.
Aproveito para desejar aos bons Amigos um “excelente” ANO De 2010!
Manuel
* Já me esquecia de dizer que tentarei dedicar cada escrito, o que faço neste caso, lembrando alguns de nós que ousaram abrir campos nas folhas dos livros que nos legaram!