quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Houve tempo, já lá vão séculos, em que a Igreja caiu na tentação de construir palácios com muralhas




Igreja em campo aberto


.A Igreja sempre esteve em campo aberto. É de sua natureza e, por isso mesmo, essa é a sua missão e seu modo natural de agir. Em campo aberto: ao calor do Verão, ao frio do Inverno, à beleza da Primavera, à serenidade do Outono. O Vaticano II veio dizer que assim é.
Porém, houve tempo, já lá vão séculos, em que a Igreja caiu na tentação de construir palácios com muralhas. À maneira de reis e fidalgos. Umas mais ostensivas a denunciar poder. Outras mais discretas, com frestas estreitas para poder espreitar, guardando da tentação de sair para o vento. Visto de longe, tudo parecia bem e iluminado. Assim, se tornou mais difícil entrar e sair, e mais cómodo estar de ouvidos cerrados ao rugir de vendavais e ao cair da chuva. O mesmo é dizer, estranho às intempéries da vida que geram sofrimento, e à luta inglória de muitos sem saberem como enfrentar o abandono.
As verdades foram ganhando bolor, as gargantas ferrugem, e o povo a ter de se contentar com a esmola ocasional e fugidia das palavras piedosas de algum frade pregador, que passava, de tempo a tempo, pelo povoado. Muitas casas paroquiais já nem eram do padre, mesmo com ele a viver lá dentro. E, onde ele ainda mandava, não raro as propostas de religião que apontavam para Deus eram limitadas, sempre iguais e de alcance reduzido para aqueles a quem chegavam, que, mesmo estes, iam escasseando, a pouco e pouco.
Um dia os maiores se aperceberam que, lá fora, em campo seu, se moviam outras forças e nelas estava o inimigo que era preciso esconjurar. Saíram, então, das muralhas para fazer guerra ao intruso. De defesa da fé e da verdade, dizia-se. Tarde de mais. Com a luz debaixo do alqueire não se pode estranhar que, na noite da vida, surjam lampiões. Os de fora equiparam-se com armas depreciadas pelos de dentro. A estas, outras se juntaram, de novo cariz e não menos poderosas. E a guerra de oposição não terminou mais.
Avisos do céu foram abafados. Palavras de profetas, não ouvidas. Sinais de novos caminhos, rejeitados. O bem que os outros faziam, desfeiteado…

António Marcelino



Mas o Espírito ia trabalhando. Onde era maior o sofrimento pela injustiça dos pecados sociais, surgiam novos apóstolos; onde o tesouro da verdade estava aberto só a iniciados, alguns mais ousados penetraram nele e apresentaram-no como bem de todos os que a ele tinham direito; onde o medo imperava, uma coragem inesperada tornou-se expressão de vida; os humildes vieram à ribalta e soaram palavras novas…
Já nada era igual na Igreja, nem modo havia de retroceder. Uns perceberam que era necessário abrir caminhos novos e uniram-se para tal tarefa. Outros não temeram a tempestade e enfrentaram-na corajosamente. Outros, ainda, avançaram sem intuitos de guerra, dispostos a falar a todos da “liberdade com que Cristo nos libertou”, mesmo onde já se hasteavam bandeiras de outras liberdades de sinal diferente.
Muralhas foram caindo; incómodos por novo rumo foram crescendo; a noite dando lugar a dias de esperança; as lutas perderam o sentido; a paz foi mais desejada; os ouvidos mais atentos às vítimas das mentiras e injustiças; os corações sensíveis à dor.
E a Igreja viu-se, como nos seus princípios, no Cafarnaum da confusão, na feira franca das ideias e das opções, no campo aberto onde todos entram. Surge, então, João XXIII com um sorriso de esperança. Carregava as preocupações de muitos, era eco da voz do grande Profeta. E disse assim: a Igreja de Cristo é luz das nações e sinal de salvação para todos, se for, de novo, serva e pobre; ela é povo de irmãos com vocação de fraternidade universal; edifica o Reino e é sinal de que Ele já está entre nós; é mãe e mestra, serviço e não poder; tem na pessoa humana  o seu caminho e o seu lugar é o lado da verdade e da justiça; tem de deixar de vez o trono dos grandes e estar, disponível para o lava-pés; falará com o mundo e ouvirá dele as alegrias e esperanças…
Outra vez Igreja no campo aberto de uma sociedade plural. Aí tem de ser ela mesma: fermento, sal, luz, proposta de amor e aberta ao diálogo, disposta ao sofrimento, fiel à verdade e ao encontro das pessoas. Igreja votada, a tempo inteiro, ao essencial, o projecto de Cristo. Igreja no mundo, sem ser do mundo, deixando que o Espírito a conduza.

António Marcelino

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