sábado, 2 de janeiro de 2010

Edward Schillebeeckx, um teólogo feliz



Edward Schillebeeckx
Deus é um luxo

A última vez que o encontrei foi em 1988, em Nimega (Holanda). Recebeu-me na sua cela bem modesta, e, embora a saúde já não fosse particularmente boa, concedeu-me tempo para uma longa conversa. E foi aí que lhe lembrei a sua afirmação de que Deus não é uma necessidade, mas um luxo. Ele confirmou: "Sim. Abusou-se de Deus, da palavra Deus, no sentido de que Deus foi funcionalizado, posto em função do homem, da sociedade, da natureza... Ora, a natureza, o homem e a sociedade não têm necessidade de Deus para serem o que são. Mas, por outro lado, o luxo da nossa vida humana é, por exemplo, poder receber um ramo de flores. Não é uma necessidade. É um gesto completamente gratuito. É essa a grande experiência humana."
Edward Schillebeeckx morreu na véspera de Natal, no passado dia 23, em Nimega. Tinha 95 anos. Frade dominicano, foi um dos teólogos católicos mais prestigiados do século XX. Preparou e inspirou decisivamente o Concílio Vaticano II, concretamente nalguns dos seus documentos mais importantes, referentes à Revelação e ao diálogo da Igreja com o mundo. Ao velho aforismo "Fora da Igreja não há salvação", E. Schillebeeckx contrapunha: "Fora do mundo não há salvação." Co-fundador da revista Concilium, que continua a ser publicada em várias línguas, a sua influência impôs-se muito para lá da Teologia, tendo, por isso, recebido o Prémio Erasmus. Crítico da Igreja oficial, concretamente da política eclesiástica do Vaticano na nomeação dos bispos, para ter de novo uma Igreja uniforme, enfrentou por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé e denunciou os seus métodos. Definiu-se, no entanto, como "um teólogo feliz".


Perguntas fundamentais: Que significado tem ainda o cristianismo para o nosso mundo secularizado?, que futuro para a Igreja? Resumiu-me o essencial: "O ecumenismo das religiões deve ser sustentado por um ecumenismo de toda a humanidade sofredora. O sofrimento injusto: eis o grande problema." Assim, "diria que o grande desafio, portanto, o futuro do cristianismo depende da presença dos cristãos e, por conseguinte, da Igreja, no futuro do mundo, nas necessidades dos homens e das mulheres. É necessário que a Igreja se não interesse apenas por si mesma, mas que se desligue de si mesma e olhe para o mundo dos homens". "Refiro-me a todo esse processo em prol da justiça, da paz e da salvaguarda e defesa da criação."
Quando lhe perguntei quais as forças que disputam o futuro do mundo actual, respondeu que há sobretudo três grandes dinamismos: "Por um lado, há o positivismo, sobretudo o positivismo científico, a tecnocracia; por outro, há esse misticismo a-político, a interioridade pura, sem relação com o mundo, com a sociedade; finalmente, as religiões, as grandes religiões mundiais, que, cada vez mais, redescobrem as suas fontes e raízes. Há aí, cada vez mais, uma ligação entre a mística e o compromisso político e social."
Esta era, para ele, a religião verdadeira, que vive do vínculo indissolúvel de ética e mística, e que tem também de ser racional. É certo que hoje "há também toda uma tendência irracional contra tudo o que é da razão. Mas eu sou contra isso. É necessário aceitar a razão enquanto tal, pois é também um motor libertador. Trata-se, porém, da razão que é esclarecida, estimulada pela consciência do sofrimento. Caso contrário, a razão é totalmente fatal e funesta para os seres humanos. Mas, quando a razão é estimulada pelo facto do sofrimento incrível no mundo, é uma razão iluminada não só pela fé, mas também pelo sofrimento injusto".
O pensamento de E. Schille- beeckx centra-se nas experiências negativas e de contraste. "Neste contraste, o homem experiencia que a situação tal como se apresenta - de maldade, de injustiça, de sem sentido -, tem de ser mudada. Nesta experiência de contraste, temos já implicitamente a perspectiva do positivo no negativo." Aí, tem de intervir a praxis solidária libertadora, que pode abrir-se à esperança fundada de que a palavra última pertence a um mistério divino indisponível de salvação, ao Deus vivo que liberta.

Anselmo Borges

In DN






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