Chicotadas do Papa e seu sentido verdadeiro
O taxista que, pelas ruas do Porto, me levava à estação de Campanhã, percebendo pela conversa dos que me acompanhavam que eu era homem da Igreja, lamentou-se da notícia publicada no jornal desse dia, que dizia que o Papa João Paulo II, segundo o testemunho de uma freira polaca, se chicoteava a si próprio, no seu quarto privado e na calada da noite. E comentava: “O senhor já morreu há tanto tempo, porque vêm agora os jornais com esta conversa. Ele fazia o que entendia, e ninguém tem nada com isso”. Pôs-me nas mãos o jornal do dia onde vinha o que se dizia do Papa. Lá lhe expliquei o que significavam essas chicotadas e que o que dissera a religiosa fora para justificar a santidade e a virtude de João Paulo II.
Compreende-se que, num tempo em que se idolatra o corpo, se fique chocado ao saber que alguém, ainda por cima o Papa, o chicoteava de quando em quando.
Cilícios, disciplinas, jejuns eram formas ocasionais de penitência pessoal, frequentes em tempos passados, não muito longínquos, e, ainda hoje, ao alcance de quem livremente as quiser usar. Consideram-se meios de ascese cristã, porque de apelo à purificação e ao fortalecimento interior. Destes permanece ainda, na Igreja, como conselho de livre acolhimento e preceito duas vezes por ano, o jejum, como apelo à partilha com os pobres. Na sociedade, ele pratica-se, por vezes com exageros prejudiciais à saúde, por razões estéticas. As disciplinas e os cilícios foram progressivamente esquecidos, como se se tratasse de instrumentos desumanos, capazes de envergonhar gente evoluída.
Pelos vistos, João Paulo II, não pensava assim. Eu também não o penso. Durante um retiro espiritual de 30 dias, que fiz em Espanha, já lá vão mais de quarenta anos, usei algumas vezes, poucas, a disciplina, ou seja, chicoteei-me, a conselho do orientador, um padre jesuíta, homem de virtude, que tem introduzido o seu processo de canonização. No início dos cursos de cristandade, década de sessenta, também usei algumas vezes o cilício, a exemplo dos dirigentes responsáveis, vindos de Ciudad Real, para nos ajudarem, na minha diocese de então, no lançamento desse método evangelizador. Em nenhum dos casos senti que este uso ocasional me tivesse feito mal, me entorpecesse o sentido, me tirasse a alegria, me traumatizasse para a vida. Na corrente do tempo que se vive, não voltei a usar nem a disciplina, nem o cilício. Mas guardo-os para poder mostrar a quem nunca experimentou, nem viu, aproveitando para fazer a catequese da necessidade que todos temos de nos penitenciarmos, seja lá como for, como recomenda a Palavra de Deus e o ilustra a vida de muitos santos.
A vida mostra que só consegue perceber o valor e a alegria da humildade, que traduz a verdade que somos, quem voluntariamente se humilha ou aceita, com coragem, a humilhação que lhe sobrevém. Cilício e disciplina eram caminho para conter orgulhos e vaidades, e não deixar que os êxitos nos desvirtuassem. Hoje há outros caminhos, que só o são, quando andados e praticados. Paulo fala destes e do uso pessoal que deles fazia, Cristo deixou a advertência que, sem penitência, todos perecem do mesmo modo.
A instalação cómoda entorpece os ossos, não os revigora. Paralisa, não agiliza.
A vida, assumida como dom e compromisso, é sempre penitência libertadora, para um coração que a fé orienta e a razão esclarece. A vida é, também, oração e louvor, para aqueles que não se esquecem que, ante Deus, são sempre todos mendigos agradecidos.
Fiquei contente e grato a João Paulo II, ao saber que ele, homem fascinante do nosso tempo, crente que dava a cara às adversidades, apóstolo que rompia fronteiras a proclamar Jesus Cristo, como único Redentor do homem, de quando em quando, se chicoteava a si próprio com a disciplina. Para Teresa de Calcutá, o caminho foi o da serena aceitação da privação de consolações, humanas e divinas, numa vida longa doada aos outros e a quem só bastou a certeza do dever cumprido e do amor nunca regateado.
António Marcelino