Sempre que se calam os profetas,
proliferam os falsos profetas
Profetas não têm faltado na Igreja, e a incompreensão, em relação a eles, também não. Se na Igreja de Cristo há o fermento novo do apelo à conversão e à mudança interior, também resta nela o fermento velho que a impede de ser serva, neste tempo em que a luz de Cristo é ainda, para muita gente, o único pão da esperança.
O Cardeal Martini, profeta a que não falta lucidez, coragem, sabedoria, amor à Igreja e aos homens e mulheres deste tempo, é, como bispo, um cristão humilde e consciente, que exerce o seu dever de promover a comunhão eclesial, com o profetismo do realismo e da esperança. Sempre houve gente de lugares cimeiros, não Bento XVI nem os seus predecessores, que o temeram, desconfiaram dele e puseram reservas públicas às suas intervenções, lúcidas, pertinentes e corajosas. Gente que, por certo, se sentiu aliviada, a quando da sua passagem a emérito. Porém, a doença progressiva não lhe apagou o dom que nele Deus outorgou à Igreja e à sociedade, nem as suas limitações de saúde, lhe limitaram o direito e o dever de discernir, criteriosamente, os sinais dos tempos e, em comunhão, ser profeta, numa Igreja em que todos se deviam sentir estimulados a exercer o profetismo que lhes é próprio, e de que muito necessita a Igreja e o mundo.
Não falo do Cardeal Martini, por uma simpatia de última hora. Conheci-o de modo directo e de vivência, não meramente ocasional, ao longo de três sínodos, de vários simpósios, de encontros frequentes, por essa Europa fora, e pela leitura e reflexão atentas a que nos habituou nas suas intervenções orais e escritas.
A Martini podemos juntar Hélder Câmara, que legou à Igreja um riquíssimo património profético, avalizado por um compromisso eloquente, ainda não entendidos.
O momento histórico que a Igreja vive, obriga a caminhos novos aos já acordados para as urgências da fé esclarecida e do testemunho coerente, que não podem enredar-se em tradições e costumes que, não raro, sossegam o espírito e anestesiam a vontade.
Sempre que se calam os profetas, proliferam os falsos profetas. A sementeira das seitas, os movimentos pseudo-religiosos que fazem da ignorância e da dor de muitos uma fonte de réditos, a onda de indiferença que atinge jovens e adultos, o descrédito programado que caiu sobre o casamento e a família, a carga pesada de tantas vidas que procuram, por vezes em vão, cireneus generosos e compreensivos, as incursões diárias nos meios de comunicação social para desvirtuarem a verdade cristã e que pugnam para impor sentimentos e opiniões falaciosas, a diminuição de vocações de consagração, tudo grita por um apelo a profetas corajosos e atentos e por um retorno urgente ao essencial.
Mais parece, em muitas circunstâncias, que a Igreja de alguns roda à volta de si própria, gasta, com os seus problemas internos, as melhores energias e, em detrimento do Reino, mais dá atenção aos “acréscimos”, que não resistem ao tempo.
Construir o Reino de Deus, fermento novo na humanidade, é o grande e apaixonante projecto de Jesus Cristo. Foi esse projecto que legou à Igreja e lhe pediu lhe fosse fiel.
Os interpelados por acontecimentos da vida que afectam o agir da Igreja, juram fidelidade ao Vaticano II. Já lá vão mais de quarenta anos, tempo suficiente para amadurecer orientações e lhes dar vida. Porém, não podemos esquecer que são já muitos os padres, leigos e consagrados que do Vaticano II apenas ouviram falar e os seus documentos são um livro volumoso, ao lado de outros, que o pó vai cobrindo.
Sente-se, aqui e ali, ao arrepio do Concílio, um agir pastoral e uma vida comunitária, que pouco tem a ver com as intuições e orientações conciliares. Recebemos um património conciliar que nos honra e responsabiliza. Ele está vivo, mas só se for posto em prática.
António Marcelino