Há hoje uma forte corrente científico-filosófica para a qual entre o Homem e os outros animais a diferença é apenas de grau. Continuo a pensar que ela é qualitativa.
Como mostrou o filósofo Pedro Laín Entralgo, a via mais adequada de acesso à comparação entre o Homem e o animal é a conduta humana observável.
Entre todos os seres da Terra, só o Homem é livre - Kant sugeriu que a liberdade é o divino em nós -, e, assim, responsável e moral, só ele tem a capacidade de razão abstracta, de autoposse, só ele se sabe sujeito de obrigações para lá das instâncias meramente instintivas, só ele pode sorrir, só ele é animal simbólico e simbolizante, só ele é capaz de amor de doação, o animal também sabe, mas só o Homem sabe que sabe, só ele é capaz de autoconsciência, de linguagem duplamente articulada, de sentido do passado e do futuro, de promessas, de criação e contemplação da beleza, de descida à sua intimidade e subjectividade pessoal, só ele sabe que é mortal e gasta tempo com os mortos e espera para lá da morte, só ele pergunta e fá-lo ilimitadamente, só ele cria instituições jurídicas e compõe música, só ele tem de confrontar-se com a questão da transcendência e do Infinito...
Evidentemente, as investigações etológicas, bioquímicas, da genética e das neurociências constituem hoje talvez o maior desafio alguma vez lançado a uma concepção verdadeiramente humanista, por causa da tentação de reduzir o humano a uma explicação no quadro exclusivo do zoológico e bioquímico. De qualquer forma, ao ser humano reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade própria, pois a ciência objectiva só existe para e a partir do sujeito. Por mais que objective de si, o sujeito humano deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de possibilidade de objectivar é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. O Homem enquanto sujeito transcenderá continuamente a explicação das ciências objectivantes. Aliás, sem esta diferença essencial, o Homem não poderia exigir respeito e reconhecimento pela sua dignidade.
Outra característica sua essencial é a busca de sentido. Enquanto os outros animais aparecem praticamente feitos, o Homem nasce prematuro, por fazer, e tem de fazer-se. Daí a pergunta: fazer-se como e para quê, com que meta e objectivo?
Dizemos que algo não tem sentido - uma frase, ou discurso, por exemplo -, quando os seus elementos surgem sem organização, sem fio condutor. O sentido tem, pois, a ver com uma totalidade harmónica, com significado.
Recentemente, os jornais faziam-se eco da preocupação das autoridades inglesas porque uma percentagem elevada de jovens (10%) se queixa do vazio existencial, sentindo a vida como insignificante e não valendo a pena. Investigadores sociais e psiquiatras não têm dúvidas de que o vazio e a frustração existencial são uma das causas maiores dos desequilíbrios do Homem contemporâneo. Não faltam investigações científicas que mostram que a carência de sentido está frequentemente na base da dependência da droga, do alcoolismo, da criminalidade, do suicídio. Outras investigações chegam à mesma conclusão pela positiva: há, por exemplo, conexão entre a prática de uma religião e o sentimento de felicidade e uma vida mais longa. Entre as razões para essa ligação está precisamente o facto de a dimensão espiritual ajudar a fixar um sentido para a existência: quem vive e vê a sua vida integrada numa totalidade com sentido e sentido último resiste mais e melhor também em termos físicos e mentais.
O Homem é por natureza o ser da transcendência: nunca se contenta com o dado e está sempre para lá de si e de toda a meta alcançada. Vive inclusivamente um desnível insuperável entre o que faz e realiza e a aspiração inesgotável a realizar-se sempre mais. Vai, portanto, caminhando de sentido em sentido, mas só encontraria satisfação total no Bem Sumo enquanto sentido de todos os sentidos, isto é, o sentido último e global. Aí está a razão por que não pode deixar de pôr a questão de Deus, independentemente da resposta que lhe dê, pois ela é intrínseca ao dinamismo do ser Homem.
Anselmo Borges
In DN