Naquele tempo…
O Natal, pelas vilas e aldeias do norte da Bairrada e Baixo Vouga, entre as décadas médias do século XX, era vivido no aconchego da família… com pouco de interacção comu-nitária. Quando muito, esta manifestava-se nas celebrações litúrgicas da noite de Natal, em tempo restrito. Melhor explicando, globalmente, naquele tempo… era assim, conforme a memória me vai recordando…
Começadas as novenas do Advento, mais ou menos monótonas e repetitivas – e, por isso, pouco frequentadas - ia-se fazendo, gradu-almente, por párocos e professores do ensino primário, a sensibilização da “pequenada” para a “festa” do Natal. Porém, nada de novo se notava que fizesse supor que ia haver festa, salvo a lembrança deixada pelo senhor prior, alertando para a necessidade de “armar o presépio na igreja”. Nada mais! Mas, como se calcula, esse convite, em zonas onde raramente acontecia algo de diferente, despertava alguma curiosidade. Por isso, marcado o dia e hora, formava-se um pequeno grupo para ir apanhar musgo, plantas secas e outras de tipo ornamental, pedras eventualmente musgosas, etc., de forma que, pelos primeiros dias de Dezembro, tudo estivesse colhido e devidamente guardado, pronto para a “armação”.
E, já com as manhãs e as noites bem frias, num sábado à tarde, sob coordenação das catequistas, o presépio ficava montado, com montes e vales, rebanhos e pastores, lagos e fontes e noras e patos e outras bicharadas… tudo a preceito e numa alusão à diversidade do mundo rural em que se vivia, tendo ao centro, uma sugestiva gruta de aspecto montanhês, na qual se enquadravam as figuras centrais da Natividade – Maria, José e o Menino - com a vaquinha e o burro, por trás da manjedoura, grupos de pastores, pelas encostas, e de anjos, por cima da gruta, enquanto outros grupos de figurantes, nitidamente com ar campestre, se aproximavam do centro em jeito de cantar e dançar, com os reis magos no horizonte do cenário – que se iam aproximando da gruta… Isto é, estava feito o presépio, inaugurado sem cerimónia, o qual concentrava, por cerca de um mês, a adesão dos fiéis, em particular da crianças.
Na noite de Natal, então, sim. Acabados os trabalhos e depois de toda a gente se ter lavado com maior cuidado, juntava-se a família, em sentido mais lato, para um jantar de ambiente e sabor bem diferente do habitual e confraternizar, aguardando-se para tal a indicação da dona da casa que, para essa noite, mais do que nunca, se via convertida em autêntica chefe-cozinheira. Porém, quem presidia à mesa e ao convívio eram os avôs ou, na falta deles, o pai de família. Quanto ao jantar – invariavelmente, bacalhau cozido, batatas e hortaliça – era abundante no essencial da composição, mas não diversificado em ofertas. Se havia frutos secos como aperitivos (nozes, uvas, ameixas, pinhões, figos…), a doçaria era singela, quase sempre na base de abóbora, predominando os bilharacos com canela… eventualmente acompanhados com outra variedade regional (leite creme, aletria, etc), contando com a presença de vinho do Porto. Porém, relativamente ao vinho do jantar, esse era seleccionado, na tradição dos gostos da região da Bairrada ou, então, do Dão.
E o fogo – bem o recordo - crepitava na lareira, nessa noite, com umas brasas mais vivas e irradiando mais calor, pelo que a pouco e pouco, acabado o jantar, todos iam gravitando em torno dela enquanto se queixavam da friagem que, lá fora, cortava os ossos… e aludiam à festividade em curso.
Subitamente, a uma palavra dos mais velhos, todos se preparavam, bem agasalhados, tomando o caminho da igreja para a Missa do galo, celebrada à meia-noite, e, então, festejar, com cânticos religiosos o nascimento de Jesus. Acabada a missa e de regresso a casa, percorriam-se as “fogueiras de Natal” que ardiam nos cruzamentos mais importantes das estradas da freguesia, feitas com especial carinho para “aquecer o Menino” – embora aquecessem mas era os fiéis passeantes. Mas, agora, seguiam cantarolando ao divino e ao profano, noite dentro, com jogos e brincadeiras do tipo do “saltar a fogueira”, muitas vezes acabando com pequenos bailaricos de bairro, como que vivendo no real as sugestões do presépio…
No dia seguinte, para além da missa de Natal, com o “beijar do Menino” – pois é dia santo - mais nada acontecia identificado com a Natividade propriamente dita e… tinha-se cumprido a “festa”. Ah! Prendas? Bem, não era propriamente uma tradição em uso nas freguesias e vilas rurais, mas começou a entrar a pouco e pouco, ao longo da década de 60, quando algumas famílias viram a sua situação melhorada por efeito da emigração para países emergentes da América do Sul ou, mais ricos, os do ocidente europeu, aliando algum desafogo económico e conforto à importação da tradição já por aí arreigada.
Assim, verdadeiramente assinalável, era aquela “noite santa” vivida em amplo convívio familiar e no aconchego de um jantar que, não sendo opíparo em suas iguarias, pelo cheiro da canela e outros condimentos, se mantinha por tempos infindos na memória dos sabores, enquanto os cânticos religiosos e outras toadas de época perduravam na retina dos sons!
E com esta mística simples, como simples tinha sido o espírito franciscano que desenvolveu a ideia da festa popular do presépio, se vivia esse Natal feliz, traduzido na música contagiante do “Alegrem-se os céus e a terra”…!
O Natal, pelas vilas e aldeias do norte da Bairrada e Baixo Vouga, entre as décadas médias do século XX, era vivido no aconchego da família… com pouco de interacção comu-nitária. Quando muito, esta manifestava-se nas celebrações litúrgicas da noite de Natal, em tempo restrito. Melhor explicando, globalmente, naquele tempo… era assim, conforme a memória me vai recordando…
Começadas as novenas do Advento, mais ou menos monótonas e repetitivas – e, por isso, pouco frequentadas - ia-se fazendo, gradu-almente, por párocos e professores do ensino primário, a sensibilização da “pequenada” para a “festa” do Natal. Porém, nada de novo se notava que fizesse supor que ia haver festa, salvo a lembrança deixada pelo senhor prior, alertando para a necessidade de “armar o presépio na igreja”. Nada mais! Mas, como se calcula, esse convite, em zonas onde raramente acontecia algo de diferente, despertava alguma curiosidade. Por isso, marcado o dia e hora, formava-se um pequeno grupo para ir apanhar musgo, plantas secas e outras de tipo ornamental, pedras eventualmente musgosas, etc., de forma que, pelos primeiros dias de Dezembro, tudo estivesse colhido e devidamente guardado, pronto para a “armação”.
E, já com as manhãs e as noites bem frias, num sábado à tarde, sob coordenação das catequistas, o presépio ficava montado, com montes e vales, rebanhos e pastores, lagos e fontes e noras e patos e outras bicharadas… tudo a preceito e numa alusão à diversidade do mundo rural em que se vivia, tendo ao centro, uma sugestiva gruta de aspecto montanhês, na qual se enquadravam as figuras centrais da Natividade – Maria, José e o Menino - com a vaquinha e o burro, por trás da manjedoura, grupos de pastores, pelas encostas, e de anjos, por cima da gruta, enquanto outros grupos de figurantes, nitidamente com ar campestre, se aproximavam do centro em jeito de cantar e dançar, com os reis magos no horizonte do cenário – que se iam aproximando da gruta… Isto é, estava feito o presépio, inaugurado sem cerimónia, o qual concentrava, por cerca de um mês, a adesão dos fiéis, em particular da crianças.
Na noite de Natal, então, sim. Acabados os trabalhos e depois de toda a gente se ter lavado com maior cuidado, juntava-se a família, em sentido mais lato, para um jantar de ambiente e sabor bem diferente do habitual e confraternizar, aguardando-se para tal a indicação da dona da casa que, para essa noite, mais do que nunca, se via convertida em autêntica chefe-cozinheira. Porém, quem presidia à mesa e ao convívio eram os avôs ou, na falta deles, o pai de família. Quanto ao jantar – invariavelmente, bacalhau cozido, batatas e hortaliça – era abundante no essencial da composição, mas não diversificado em ofertas. Se havia frutos secos como aperitivos (nozes, uvas, ameixas, pinhões, figos…), a doçaria era singela, quase sempre na base de abóbora, predominando os bilharacos com canela… eventualmente acompanhados com outra variedade regional (leite creme, aletria, etc), contando com a presença de vinho do Porto. Porém, relativamente ao vinho do jantar, esse era seleccionado, na tradição dos gostos da região da Bairrada ou, então, do Dão.
E o fogo – bem o recordo - crepitava na lareira, nessa noite, com umas brasas mais vivas e irradiando mais calor, pelo que a pouco e pouco, acabado o jantar, todos iam gravitando em torno dela enquanto se queixavam da friagem que, lá fora, cortava os ossos… e aludiam à festividade em curso.
Subitamente, a uma palavra dos mais velhos, todos se preparavam, bem agasalhados, tomando o caminho da igreja para a Missa do galo, celebrada à meia-noite, e, então, festejar, com cânticos religiosos o nascimento de Jesus. Acabada a missa e de regresso a casa, percorriam-se as “fogueiras de Natal” que ardiam nos cruzamentos mais importantes das estradas da freguesia, feitas com especial carinho para “aquecer o Menino” – embora aquecessem mas era os fiéis passeantes. Mas, agora, seguiam cantarolando ao divino e ao profano, noite dentro, com jogos e brincadeiras do tipo do “saltar a fogueira”, muitas vezes acabando com pequenos bailaricos de bairro, como que vivendo no real as sugestões do presépio…
No dia seguinte, para além da missa de Natal, com o “beijar do Menino” – pois é dia santo - mais nada acontecia identificado com a Natividade propriamente dita e… tinha-se cumprido a “festa”. Ah! Prendas? Bem, não era propriamente uma tradição em uso nas freguesias e vilas rurais, mas começou a entrar a pouco e pouco, ao longo da década de 60, quando algumas famílias viram a sua situação melhorada por efeito da emigração para países emergentes da América do Sul ou, mais ricos, os do ocidente europeu, aliando algum desafogo económico e conforto à importação da tradição já por aí arreigada.
Assim, verdadeiramente assinalável, era aquela “noite santa” vivida em amplo convívio familiar e no aconchego de um jantar que, não sendo opíparo em suas iguarias, pelo cheiro da canela e outros condimentos, se mantinha por tempos infindos na memória dos sabores, enquanto os cânticos religiosos e outras toadas de época perduravam na retina dos sons!
E com esta mística simples, como simples tinha sido o espírito franciscano que desenvolveu a ideia da festa popular do presépio, se vivia esse Natal feliz, traduzido na música contagiante do “Alegrem-se os céus e a terra”…!
Amaro Neves, historiador
In Ecclesia