sábado, 17 de novembro de 2007

A ESPERANÇA E A SANTA ESPERANÇA


Uma reflexão aprofundada sobre a esperança deverá começar por aquela tendência para o futuro que caracteriza todo o ser vivo e mesmo toda a realidade cósmica, em evolução, de tal modo que já é e ainda não é adequadamente - por isso, está a caminho.
O cosmos, desde a sua origem, é em processo (do latim procedo, ir para diante). A realidade material tem carácter "prodeunte" (do verbo prodeo, avançar), para utilizar uma palavra do filósofo Pedro Laín Entralgo, que estou a seguir.
Trata-se de uma propriedade genérica que se vai fazendo proto-estruturação - passagem das partículas elementares às complexas -, molecularização - dos átomos às moléculas -, vitalização - das moléculas aos primeiros seres vivos -, vegetalização, animalização - aparecimento e desenvolvimento da vida quisitiva da zoosfera - e hominização - transformação da tendência geral para o futuro em "futurição" humana, tanto no indivíduo como na espécie humana e na História, desde o Homo habilis até ao presente.
No quadro destes modos de existir na orientação do futuro, só quando se chega ao nível do ser vivo, que precisa de buscar para viver, é que se dirá que a tendência para o futuro se configura como espera, podendo chegar a ser esperança. Desde o nascimento até à morte, entre a esperança e o temor, o animal vive permanentemente voltado para o futuro e orientando a sua espera na procura do que precisa para viver.
O animal e o Homem esperam, mas, enquanto a espera animal é instintiva, no quadro dos instintos e de estímulos, situada e fechada, a do Homem transcende os instintos, os estímulos e as situações, sendo, portanto, aberta, de tal modo que nunca se contenta com a simples realização de cada um dos projectos parciais em que a sua "futurição" constitutiva se concretiza.
Laín dá um exemplo. Numa "sala de espera" de uma estação de caminho-de-ferro, não me limito a aguardar a chegada do comboio que traz o meu amigo, pois, mesmo que não tenha consciência explícita disso, espero o que será a minha existência em todo o seu decurso posterior. A espera humana está realmente aberta a possibilidades que transcendem a realização feliz ou frustrada de cada projecto.
Ora, tanto num como noutro caso, isto é, tanto na espera do concreto - aqui, a chegada do amigo no projecto de aguardá-lo - como, mesmo que não pense directamente nisso, na espera do que transcende o concreto e limitado - o que será de mim na minha vida depois da chegada do amigo -, são possíveis duas atitudes enquanto tonalidades afectivas: a confiança e a desconfiança.
Devido a uma multiplicidade de factores, desde o temperamento às circunstâncias biográficas de sorte ou desgraça, passando pela educação, estes dois estados de ânimo - confiança e desconfiança - "podem converter-se em hábito de segunda natureza: a esperança, quando é a confiança que domina, e a desesperança, quando prevalece a desconfiança".
O Homem, como o animal, não pode não esperar: vive orientado para o futuro e esperando o que projecta, isto é, a consecução de metas e objectivos concretos e também, quer se dê conta disso quer não, o que permanentemente transcende a obtenção desses projectos. A esperança tem, pois, dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar - a confiança não é certeza - em que a realização da existência pessoal será boa).
Esta esperança do fundamental é a "esperança genuína", que assume também dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans- -histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida para lá da morte em Deus.
Aí encontraria o Homem finalmente, como diz Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude e a ânsia de Infinito: "O nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus." "Santa esperança!", dizia Péguy.
Anselmo Borges
In Diário de Notícias

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