quarta-feira, 16 de maio de 2007

Um artigo de António Rego


O CAMPEÃO

Entre um sorriso e uma raiva escondida se cruzam as grandes discussões sobre futebol. Não será bom cidadão quem não diz, nalgum momento, que gosta deste ou daquele clube, próximo ou longínquo do lugar de origem ou donde vive. Ou, por imperativo dos jornais, relatos e transmissões desportivas, aderiu a uma massa informe de gente que grita no estádio ou nos milhares de estádios domésticos, convertidos numa final de taça ou campeonato que a televisão converte em templo.
É uma realidade. E quando se fala em milhões por uma transferência ou compra de atleta, é disso que se trata: milhares e milhões de pessoas que sustentam essa máquina, com os ouvidos e os olhos devoradores do espectáculo, num estádio como se fosse um templo, um relvado como altar ou ara de imolação e triunfo.
Todos entram neste jogo, directa ou indirectamente. Mesmo aqueles, ou talvez aquelas, que detestam gritos e discussões em torno dum assunto que não estão interessados em perceber. Mas não podem ignorar. Os ritmos dos serões familiares alteraram-se e o tema das conversas com os amigos passa sempre pelo desporto, pelo futebol, na sua versão mais singular: o jogo, a vitória, a derrota, as estratégias, as jogadas, os erros, os resultados, os comentários.
E todo o complexo emocional que envolve o jogo: o investimento extremo de energias, o ensaio de esperança no meio dos grandes desesperos, a catarse de todas as raivas, a naturalidade de todos os vocabulários. Ninguém admite que seja real, que tudo não passe duma cena momentânea que põe em jogo o ego, o saber, a intuição, o apoio, a aniquilação, a força, o poder. Muito raramente intervém a razão, a não ser para conter impulsos que transbordem o sensato. Mas em poucas matérias o razoável vai tão longe. A cada um se permite o parêntesis no porte e na dignidade. Desporto, claro que não é. É jogo. No plural e no simbólico.
E, todavia, no estádio se exibem grandes valores da humanidade. Na equipa, entreajuda, entrega esgotante, inspiração livre, para tratar um objecto imprevisível no capricho da sua esfericidade. A superação de impossíveis obstáculos naturais ou artificiais. Lutar de igual para igual com respeito pelas regras. E obedecer a sentenças que são, muitas vezes, obviamente injustas. É a recriação dum espaço real ou um ensaio da vida quotidiana. O futebol. O campeonato. O campeão. O maior. Com milhões. É assim. O melhor. A lógica é o menos. O campeão é o máximo. E chega. Já é muito.

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