sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

UM ARTIGO DE D. ANTÓNIO MARCELINO

MAIS VIAGEM
DO QUE PORTO
Ouvi há dias, na inauguração da nova Residência dos Professores, gente de várias idades fazer coro afinado e entusiasta numa canção que abre caminhos para quem pode ter a tentação de pensar, com o avançar do anos, mais em comodidade, que em novos sonhos e projectos. “Viver é mais viagem do que porto”, assim se cantava. A canção continuava advertindo sabiamente os distraídos e os menos corajosos: “Ai de quem só vê na idade apenas tempo/ Ai de quem olha para o espelho e só vê rosto…” Ao terminar esta cerimonia inaugural, o coro da Academia dos Saberes, com muita gente aposentada, entoou cânticos lindos a mostrar que a vida também afina gargantas quando os corações estão vivos e sensíveis à beleza e ao bem. Também ouvi a Presidente Nacional da Associação, que já conta oito décadas de uma vida cheia de entusiasmo e esperança, citar alguém de nome que dizia que onde termina o encantamento ante a beleza e o bem, é sinal de que também terminou a vida. Há uma salutar e benéfica contracorrente na sociedade que procura, ao arrepio de um mundo de interesses onde só conta o poder e o dinheiro, mostrar que há patrimónios adquiridos ao longo de anos de trabalho persistente, que não podem menosprezar-se. Entre estes está o património da idade, que é sabedoria acumulada na escola da vida, capacidade escondida para coisas novas, cadinho de esperança viva e fecunda, cátedra aberta de um saber que escasseia ou se transferiu para outros saberes de utilização imediata, mas saberes efémeros em relação ao que a vida pede e nunca dispensa. Tenho dito, de muitos modos, que em cada idoso que lutou e venceu, por vezes em situações bem difíceis, reside um mundo de sabedoria que as bibliotecas não comportam, nem se ensina nas melhores universidades. A escola da vida, hoje, por vezes, empobrecida de valores e impeditiva de estímulos para poder crescer por dentro, é aquela que verdadeiramente forma pessoas sérias, honestas, colaborantes e sensíveis e as enriquece de critérios válidos e consistentes. Na escola da vida, os comportamentos ditavam as leis, os princípios davam rumo às relações mútuas, as coisas eram como eram e não como convinham que fossem, a chave na porta dava sentido à solidariedade e tom ao acolhimento fraterno. “Estão a estragar a vida” desabafava alguém à procura de uma palavra de estímulo, por ver que, depois de anos de luta, os seus filhos mais queriam os caminhos aliciantes que a sociedade consumista e hedonista propicia, que aqueles que cada um vai abrindo com o seu esforço e ajuda de outros e ainda com as certezas interiores que os norteiam e confortam. A vida não é porto de chegada e de repouso, mas estímulo a caminhar sempre mais. A sabedoria dos vivos assim ensina, porque da dos mortos já nada se pode esperar. Tantos idosos que estão empurrando a vida, a sua e a dos outros! Tanto voluntariado generoso de gente que já podia descansar, mas descobriu, por sorte sua, que fazer bem é na vida um estimulo a viver mais e melhor e por isso continuam em viagem, descobrindo riquezas próprias e de outros que nem imaginava! Só sabe o valor da vida quem faz dela viagem até ao fim, para que o seja para além do fim. Ouve-se dizer a miúdo, em ar de conselho para convencer: “Já é tempo de descansar”. É tempo é de viver de outro modo, com horizontes novos mesmo que sejam os de sempre. Que pena tenho dos idosos que, meio adormecidos, só esperam a morte, sem que alguém lhes espevite o amor pela vida e o modo de a tornar útil. Há que continuar a pedir a quem sempre deu. Dispensar de ir mais longe é cortar asas, porque o mistério da vida é sempre uma revelação contínua, cheia de novidades e surpresas impensáveis.

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