terça-feira, 14 de novembro de 2006

UM ARTIGO DE ALEXANDRE CRUZ

Os tempos e lugares
do essencial
1. Atravessa a forma de pensar do mundo contemporâneo ocidental uma ideia de que tudo tem de ser muito prático, directo, de que de tudo tem que se tirar um lucro, um proveito, um benefício. No fundo sempre assim foi e será no realismo da condição humana. Mas se é natural o carácter prático (da realidade) das coisas que estão sempre aí, todavia, mal vai quando nesse benefício não se vê mais que o interesse pragmático próprio em desvalor do bem comunitário. Perder-se a noção do bem comum, pelo apressar e concorrência muitas vezes feroz da vida social, será caminhar para uma progressiva pobreza de horizontes de vida e de felicidade (que tanto de procura), deitando a perder o próprio futuro. Não existam dúvidas, quanto mais progredir o sentido prático que acentua exclusivamente os (contra) valores do interesse próprio mais a sociedade cristalizará nas suas noções de cooperação e mais um espírito agreste de menor sensibilidade ética vai fazendo o seu caminho para a menoridade. Há, naturalmente, um espírito prático que na vivência da responsabilidade diária faz parte do caminho no procurar fazer bem e da melhor forma possível tudo o que se faz. Isto é muito positivo na óptica de ser-se profissional (fazer bem) naquilo que compete; mas outra coisa bem diferente e menos feliz será assumir uma “mente pragmática” e, a certa altura, não ser capaz de, com flexibilidade de espírito, ver bem mais longe que a “vírgula ou a fórmula” que bloqueia a mente. Como proporcionar um crescimento para a abertura de horizontes que saibam apurar finalidades acima do prático diário? 2. A questão anterior, mais premente que nunca (pelo fechar de muitas mentalidades a novas dimensões de vida e ao encontro com o “outro” diferente), pode obter resposta muito positiva nas correntes de solidariedade e entreajuda que, de forma espontânea e criativa vão proliferando. Fala-se hoje muito, entre nós, da renovação dos sistemas sociais, institucionais, religiosos e políticos, e mais ainda na renovação urgente dos sindicatos; verifica-se, em contraposição com essas instituições que vivem “do e no passado”, cada vez mais como a simplicidade e acessibilidade de processos e de comunicação é sucesso visível, que se poderá espelhar (entre tantos outros exemplos) na mundialização do microcrédito e nos móveis IKEA, e em muitos outros sectores; processos simples, acessíveis, pessoais, que souberam superar a complexidade fixista dos sistemas clássicos. Todas as correntes de solidariedade, hoje global, traduzida numa rede de milhares de ONG’D (Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento), imbuídas de um espírito prático mas ético, são assim sinal de um novo essencial encontrado como resposta aos desafios reais da própria Humanidade. As energias, os tempos e os lugares onde estas ONG’D actuam semeando dignidade humana e esperança, representarão hoje uma corrente de liberdade sem fronteiras e sem “registo de propriedade”. 3. Diz-nos esta nova realidade “livre”, sem tutela de registo político, filosófico ou religioso e ao mesmo tempo num espírito inclusivo de todas as visões de mundo no que elas têm de dignificante, que estamos diante de um novo essencial. Sendo certo que importará reflectir, dar tempo e lugar, interiorização no entendimento dos “porquês” da ética, fazendo caminho de aperfeiçoamento e profundidade das razões, muitas vezes surpreende-nos a pequenez de espírito de alguns sistemas religiosos que, tão codificados e donos da “propriedade solidária”, menorizam o que o outro faz de bem, apelidando-o de “mera filantropia”. Será que como todas as “filantropias”, em partilha e sua reflexão, não estaremos mais perto da personalização do absoluto? A verdade é que os tempos e lugares do mundo global presente não coabitarão com as mentes fechadas mas serão de espíritos abertos na urgência de novas sínteses de proximidade humana pois estamos num tempo totalmente novo. Também é certo que dos primeiros passos será assumir um continuado espírito de renovação e inclusão, e tal abertura de mentalidade, mesmo na era da especialização globalizada, só se atinge mais plenamente com o necessário “momento” de discernimento e reflexão sobre “qual é o “essencial” no meio de tantos acessórios(?)”. Sendo a “reflexão” algo invisível ao olho clínico, todavia ela precisa de nós, do nosso tempo e lugar para irmos apurando a qualidade do ideal que buscamos e não nos perdermos nas coisas (só) práticas. Tal como a felicidade não é um presente que se compre assim também o idealizar da vida e da sociedade que se quer (ou não se quer) não poderá depender (só) da prática do orçamento. Que seria de um país com o slogan do défice equilibrado mas com uma multidão desmotivada, desempregada e, mesmo lutando e trabalhando, sem lugar para sobreviver? Nem tudo podem ser números ou coisas práticas, e a noção de “sustentabilidade” implicará mais horizontes de caminho com as pessoas (estas sim, são a realidade prática).

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