sexta-feira, 30 de dezembro de 2005

Um artigo de António José Teixeira, director do DN

Hibridismo
Dêmos as voltas que dermos, há razões de sobra para que não nos orgulhemos muito do rumo do mundo. Ou da falta de rumo. Há sempre muitos candidatos ao leme, mas rareia clarividência, lucidez estratégica, sentido de civilização.
A Europa está parada, ocupada na contabilidade corrente, pouco ou nada empenhada em qualquer desígnio de futuro. E isso não acontece por acaso. Acontece em boa parte porque a Europa está velha, cansada, não tem dirigentes à altura das circunstâncias, mas também porque em tempo de impasses, de transição, tudo se torna fluido, híbrido. O filósofo e engenheiro Salvador Pániker dizia esta semana que vivemos na era do hibridismo "Os valores são cada vez mais relativos, móveis, provisórios." A plasticidade humana, a flexibilidade, as identidades múltiplas que cada um de nós pode assumir, os sentidos de pertença quantas vezes contraditórios, vão originando um mundo descaracterizado. Por vezes, mais rico, mais adaptável, desinteressado, mas interesseiro, quase nunca mais autêntico.
O caso do homem de negócios Silvio Berlusconi, que se envolveu na política para resolver os seus problemas com a justiça e foi eleito primeiro-ministro, demonstra bem até que ponto se relativizam valores mínimos de ética. Berlusconi chegou ao poder quando se avizinhava o cerco da justiça por inúmeras suspeitas de crimes graves. Depois de o socialista Bettino Craxi, seu protector, ter fugido para a Tunísia, Il Cavaliere conseguiu alterar leis a seu favor, obteve prescrições de processos graves e nem por isso foi beliscado na sua legitimidade democrática. Custa a dizer e a escrever "democracia"quando o voto popular tem permitido fazer do estado de direito gato-sapato. Mas essa é a realidade nua e crua com que a respeitável Europa se confronta há muito sem aparentar grande desconforto. Berlusconi não é o único num tempo em que tudo se vai relativizando, a palavra não vale grande coisa, a lei serve para se mudar ou cumprir às vezes, todos os que se interessam pelo poder são olhados pelo crivo do "mal necessário". Não espanta que Berlusconi continue a ser primeiro- -ministro, sempre sob suspeita, sempre a contornar a lei. Ao olhar dos híbridos, Berlusconi é um vencedor. Safa-se bem. Assim vai o mundo. Como diria um conselheiro tão arguto como malvado "As coisas estão tão mal que até parecem as do próximo ano..." É difícil ter esperança.

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