domingo, 21 de agosto de 2005

Um conto de Tridade Coelho


  ABYSSUS ABYSSUM


Nesse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio. Assim eles tivessem uma coisa boa!... Mas que tentação para ambos, o rio! Ainda lhes soavam aos ouvidos, com todo o seu entono vibrante de ameaça, aquelas terríveis palavras com que a mãe os intimidara, um dia que lhe apareceram em casa tarde e às más horas. – Ouvistes? – ralhara-lhes a mãe. – Olhai se ouvistes! Se voltais ao rio, mato-vos com pancada! Andai lá... Ih! Como ela dissera aquilo, Mãe Santíssima! Colérica, ameaçadora, com a mão em gume sobre as suas cabecitas louras...
Lembravam-se de haver tremido, cheios de susto, muito chegados um ao outro, humildes sob aquela ameaça terminante. E então, nesse dia, eles não tinham ido ao rio. Aos pássaros, sim... lá estavam as calças rotas do Manuel a dizê-lo – ...aos pássaros é que eles tinham ido. Ao rio era bom!, a mãe que o soubesse... Ah, mas então não os deixassem dormir naquele quarto! 
Logo de manhã, mal abriam as janelas, a primeira coisa que viam era o rio, uma corrente muito lisa e esverdeada, serpeando entre os renques baixos dos salgueiros. Lá estava a ponte velha, de onde os rapazes se atiravam despidos, de cabeça para baixo, e então o barquinho branco do fidalgo – lindo barquinho! – sempre à espera que o fidalgo o desamarrasse para passar à grande quinta que tinha na margem de lá. De modo que o primeiro desejo que logo pela manhã assaltava os dois rapazes era o de irem por ali abaixo, muito madrugadores, tão madrugadores como os melros, meterem-se dentro do barco, desprendê-lo da praia e deixá-lo ir então para onde ele quisesse, contanto que fosse sempre para diante... 
Quando fechavam as janelas para se deitar, a sua vista seguia, mesmo através da escuridão da noite, a linha que ia dar ao barco. Era o seu «adeus até amanhã!» àquele pequeno objecto, que valia tesouros, que para os dois valia mais que tudo, tudo... Ah! tivessem eles assim um barquinho, que não queriam mais nada... – Mais nada? – Isso não... mais alguma coisa. E a mãe que não ralhasse, está visto. Mas nessa manhã, bela manhã, na verdade!, a mãe viera acordá-los mais cedo. Ia já pela aldeia um claro rumor de vida – gente que passava para os campos, os solavancos dos carros no empedrado péssimo da rua, os patos da vizinhança que saíam em rancho para a digressão pelos prados, grasnando ruidosamente, levantando-se em voos curtos, espantados da agressão acintosa dos rapazes. 
Havia mais de uma hora que ali perto se ouvia o retintim agudo do martelo do ferrador atarracando cravos na bigorna. Já o reitor passara para a missa, em batina, muito hirto e vagaroso, as chaves da igreja na mão esquerda e na direita a cabacita do vinho. E àquela hora onde iria já a missa! A última beata, encapuchada e lenta, recolhera, trazendo consigo a esteira em que ajoelhara na igreja. Havia mais de meia hora que o João carpinteiro, no meio da rua, dava com valentia num carro cujo eixo ardera na véspera, e que era urgente compor, pelos modos. Até o Ernestinho do estanco abrira já a loja e subira à varanda a regar os manjericos. Começos de labuta diária, enfim; os senhores sabem. 
Pois, como lhes disse, a mãe viera nessa manhã acordar mais cedo os dois pequenos. – Fora, mandriões, vamos! É preciso afazerem-se a madrugar, que tal está! Ai, ai, dia claro há que tempos, vem aí o sol, e os morgadinhos na cama! – E, enquanto falava, ia-lhes abrindo as janelas. – Persignar e vestir, vamos! Calças... colete... os jaquetões... tomem! E pôs-lhes tudo sobre a cama. – Mãe, a bênção! – balbuciaram os dois, tontos de sono ainda. – Deus os abençoe. Que Deus não abençoa mandriões, ouviram? 
Ora, eu já volto! Queira Deus que não vos encontre cá fora, tendes que ver! Os dois sentaram-se na cama para se vestir, contrafeitos, fechando os olhos àquela hostilidade viva da luz que invadira o quarto num jacto repentino e brutal. Pela abertura larga da camisa assomava-lhes o peito que eles Mas a mãe não tardava ali. Era preciso vestirem-se, que remédio! Foi então que o Manuel, mais esperto do sono, olhando para o campo, o achou encantador, todo afagavam numa última carícia, suavemente, docemente. Seria tão bom tornar a adormecer, assim mesmo sentados! 
O mais novito ainda tentou deitar-se outra vez, pesaroso de ter de abandonar já o aconchego morno da cama, onde se estava tão bem, onde os sonhos eram tão lindos!...resplandecente de verduras. – Bonita manhã, não vês? As árvores parecem mais lindas, repara. Porque será? O outro encolheu os ombros, não sabia; só se fosse por não haver nuvens... Pela janela aberta, avistava-se um trecho de paisagem que a luz viva da manhã fazia muito nítida. 
As vinhas tinham um verde encantador, muito suave, trepando encosta acima, fazendo contraste com a rama escura das laranjeiras que cerravam alas nos pomares húmidos das baixas. Revestidos de folhagem, ascendiam ares fora os olmos gigantescos. Pedaços de horta estavam em toda a pompa do seu viço e da sua frescura. Viam-se as rodas das noras, latadas compridas a cuja sombra regalam as merendas. 
Um renque de choupos esguios marcava a borda do rio, que nessa manhã deslizava muito sereno, esverdeado de águas, espelhante sob aquele céu imaculado. – Ah!, ah!... – riu-se o Manuel, contemplando-o. – O rio! Que te parece?! Olha que é lindo, o rio! Ora é, ó António?! – É, lá isso... Mas tamém de que vale? – tornou-lhe com desalento o irmão. – A gente não pode lá ir... Olha se a mãe o soubesse, hã? – E, mirando por sua vez a paisagem, perguntou: – Já reparaste no barco, ó Manuel? – Tão bonito! Os dois riram. – Parece pintado de novo... E nem se mexe, repara! – Pudera!... – explicou o Manuel – ... amarrado com uma corda... – E depois, radiante, gesticulando para o irmão: – Mas eu era capaz de o desamarrar... – Ai eras! – disse duvidoso o António, para o incitar. (Para ler tudo, clique aqui)


Nota: Trindade Coelho nasceu em Mogadouro em 18 de Junho de 1861 e pôs termo à vida em 9 de Junho de 1908. Este conto, que faz parte do seu famoso livro "Os meus amores", merece ser lido num dia lindo como este, por gente que gosta de encher o tempo com prazeres que só a leitura pode oferecer.

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