quarta-feira, 30 de maio de 2007

Um artigo de António Rego

AUSCHWITZ CONSENTIDO
Temos direito a perguntar-nos se a justiça e a paz são acontecimentos com défice ou com excesso de informação. As imagens de violência despertam-nos para a urgência da paz ou dela nos desinteressam pela insensibilidade que geram face à exposição excessiva dos dramas humanos? E como lemos, para além da náusea ou do apego ao espectáculo, a relação da justiça com a paz, do desenvolvimento com a harmonização das diferenças, da pobreza com a destruição, do terror com as situações opressivas próximas ou longínquas de países, culturas, religiões, impérios de tirania, riquezas usurpadas aos mais fracos, esquecimentos geradores de revoltas, tensões próximas da explosão por excesso de silêncio e cumplicidade dos mais capazes de fazer funcionar uma justiça para todos? Não nos esqueçamos que o mundo já foi muito pior do que é hoje. Há passos gigantes já andados no debelar de enfermidades e carências extremas em tantos recantos da terra. Há sinais de pobrezas vencidas, com caminhos fraternos de desenvolvimento. Mesmo com o desequilíbrio do mapa Norte-Sul - um escândalo cuja vergonha deve ser repartida por todos - não podemos dispensar a justiça no julgamento do que já foi feito por uma melhor repartição de todos os bens essenciais a cada povo e a cada indivíduo. Mas a verdade é que o conforto de alguns – poucos - na casa comum que é a Terra, gera desleixos no olhar e no agir, no sentir e no lutar por uma repartição mais justa dos bens. Não se trata duma questão secundária do nosso tempo, nem duma fatalidade entregue às leis cegas do mercado. Não se trata duma questão de consciências mais sensíveis ou marcadas por escrúpulos religiosos. As manchas de pobreza e miséria, de esmagamento e humilhação de povos, culturas e religiões, são um Auschwitz consentido pelo mundo moderno teoricamente sensível a valores e direitos humanos, mas confuso na sua análise e tíbio na sua aplicação. Estamos perante uma questão de cidadania, pertença da humanidade, responsabilidade de todos e cada um, questão central na consciência do mundo de hoje. A cada um é colocada a dramática pergunta: “quantos pães tendes?” Neste terreno se moveu a Conferência da Comissão Nacional Justiça e Paz. E mais de uma dezena de organismos que reflecte estas questões com carácter de urgência do nosso tempo. O problema é fazer chegar esta sensibilidade a quem de direito. Ou seja a todos nós. E a cada um.

Um artigo de Alexandre Cruz

Aliança das Civilizações
1. Alianças, pontes estratégicas para encontros comuns, parcerias que fortaleçam os laços de unidade, são dinamismos sempre bem vindos pois correspondem ao essencial da nossa comum dignidade humana: nascemos para viver juntos, mas muito mais que isso, para ser felizes uns com os outros. Precederam-nos séculos de buscas e procuras tantas vezes intolerantes, em que os muros levantados espelhavam a não aceitação das diferenças de pensamento e acção (ainda que muitas destas culturalmente saudáveis na base da dignidade humana); chamaram-se muitos nomes “em vão” acentuando-se mais os pormenores das diferenças que a unidade do essencial, o que representou factor gerador de “choques” demonstrativos da incapacidade de coexistir com o outro. O tempo que vivemos (e sempre que a velocidade comunicacional agitou a vida para novos mundos tal se verificou), será a época da nova síntese construída pelos líderes que, acolhendo a autêntica liberdade (responsável), sabem integrar a pluralidade de forma criativa. Só haverá “aliança” na reciprocidade de projectos e compromissos; e só com sensibilidade e bom senso a reciprocidade ajudará uns e outros a tornarem relativos os pormenores e darem importância ao que merece esse patamar. Felizmente vamo-nos abrindo à totalidade, pelo menos no campo das ideias, e reconhecendo que falar de identidade não é dizer um igualitarismo clonado mas que no nosso próprio ser inscreve-se uma “identidade como diferença”. No fundo, todos neste mundo somos filhos da pluralidade, a noção de diferença construiu-nos, até nas grandes mensagens existenciais históricas; porque é que por vezes preferimos o “choque” à “aliança”? 2. Na percepção feliz do eixo determinante da aproximação dos povos em globalização, o então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, lançou (em 14.07.2005) a “Aliança das Civilizações”. Este lançamento sublinha que na nossa condição humana de pessoas as grandes questões da humanidade não se resolvem à pressa, on-line, ou tecnologicamente longe do “outro”; um novo entendimento, a partir das próprias feridas que atravessam os povos, quererá reinterpretar o nosso tempo. Na base da interdependência entre todas as nações neste mundo global, a Aliança das Civilizações apresenta-se, na sua origem, como plataforma quererá combater os preconceitos e incompreensões entre as culturas, nomeadamente islâmicas e ocidentais. Sublinhava-se na altura, segundo o porta-voz de Kofin Annan, Stephane Dujarric, que «os acontecimentos deste últimos anos acentuaram a impressão de um fosso crescente e de uma falta de compreensão entre as sociedades islâmicas e ocidentais, um ambiente que foi explorado e exacerbado por extremistas em todas estas sociedades». Neste contexto, afirma o comunicado fundacional, «a Aliança das Civilizações entende-se como uma coligação contra estas forças, como um movimento para promover o respeito mútuo pelas crenças e tradições religiosas e como uma reafirmação da interdependência crescente da humanidade em todos os domínios.» 3. Tendo sido o processo desta aliança iniciado pela Espanha e pela Turquia em 2004, ideia depois acolhida e integrada nas Nações Unidas (que a criaram em 2006), será de realçar que presentemente é um cidadão português que preside a este Alto Comissariado. Nomeado a 26 de Abril de 2007, Jorge Sampaio considera que as suas primeiras linhas de acção vão passar por dar «especial atenção à clivagem entre as sociedades ditas ocidentais e muçulmanas, bem como no seio das sociedades ocidentais ao aumento da intolerância, da xenofobia e do extremismo.» É inegável e incontornável que a construção da paz mundial, da liberdade como desenvolvimento humano e do próprio salvamento ecológico do planeta, exigirão o máximo esforço de se conjugar em aliança todas as sinergias positivas e estimulantes. Este também poderá ser um modo de diluir os riscos sempre dramáticos do pensamento extremista. Se as comunicações globais de hoje colocam-nos à mesa uns com os outros todos os dias, será essencial que esse encontro se revista sempre mais de espírito de aliança em cooperação parceira. É tarefa que é missão real (que quererá mesmo iluminar de sentido a comunidade virtual); é missão pessoal e global que exigirá de cada cidadão a entrega diária no aliar o rigor dedicado à sensibilidade para com cada outro… Só nesta vi(d)a aberta e plural haverá futuro com futuro!... (Toda a cega intolerância uniformista, venha de que fonte vier, é regresso ao pior do passado.) Assim seja tão fácil construir pontes de entendimento humano entre os povos como erguer pontes de betão!...

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Ausente, mas sempre presente

Problemas técnicos, desde ontem e até não sei quando, im-pedem-me de estar, com alguma regularidade, com os meus amigos. Também vou estar ausente, por uns dias, para férias. Mas aqui voltarei, sempre que puder, se para tanto encontrar, por aí, uma porta aberta. Não será difícil, pois o mundo, agora, cabe todo numa palma da mão...

domingo, 27 de maio de 2007

Ares da Primavera



ONDE PARAM
AS SALINEIRAS DE AVEIRO?
:
Quando passo pelas Pontes, em Aveiro, não deixo de apreciar as quatro estátuas que a autarquia ali pôs, uma a cada canto. Para os aveirenses verem, e recordarem, e para os visitantes ficarem com uma ideia, mesmo pálida, do que foram as gentes que trabalharam na Ria e nas salinas. Que me perdoem os artistas, mas eu acho que as estátuas poderiam ser um pouco maiores. Assim, dá a impressão que os aveirenses são de "roda baixa", como se dizia na minha meninice, quando afinal são gente possante e a puxar para o alto. Que o digam os que se lembram dos nossos remadores do Galitos, que há décadas andaram pelas Olimpíadas, mostrando como se rema.
Hoje e aqui fica a salineira, com a sua canastra a tiracolo, bem à moda de levar o sal da eira da marinha para os barcos saleiros e destes para os armazéns. Da marinha para as eiras, onde iam construindo, canastra a canastra, os célebres montes, que emprestavam à ria um colorido raro, essa tarefa era de homens, possantes, sofredores.
As salineiras, essas desapareceram praticamente do mapa de Aveiro e sua região. Para que não caiam no esquecimento, aqui fica um pouco da nossa memória aveirense.

TECENDO A VIDA UMAS COISITAS - 25




O MOINHO
DOS TRASGOS
E A MOURA


Caríssima/o:

Gostaria de aproveitar para saudar todos os Parentes que tiveram suas raízes em Vimioso e, para nós, em Argoselo, hoje Vila. De lá vieram os Ataíde Fernandes; com vice-reis da Índia ou sem eles, a nossa geração aí está também ela pelos quatro cantos do Mundo (olá Artur!) e outros pela Gafanha (Viva Óscar! Como estás Humberto!), ainda alguns por terras de Bragança (Ei, Domingos!) não contando os que já vivem no Reino (Cravo da Rocha, estamos contigo!), isto sem esquecer a todos os outros que a todos envio o meu trasgo.

«O Moinho dos Trasgos fica no sítio do Caniço, na margem esquerda do ribeiro de Riaduros, afluente do Carvalhal. Bem, o que lá está são apenas ruínas. Não se demorem lá muito porque também o moleiro que o trabalhava o abandonou. É que, certa noite, quando ele assava um bocado de carne, um trasgo juntou-se-lhe para assar uma espetada de lagartixas. E não é que o trasgo queria pingar a gordura exactamente no pão em que o moleiro aparava o bocado de carne?!! O moleiro conseguiu que o trasgo se fosse embora, mas verdade é que ele deixou de trabalhar ali e ninguém se apresentou para tomar conta do moinho. Ah, mas esquecia de dizer o que são trasgos! Pois, ainda que o dicionário da Academia os não inclua, trasgos, conforme a crença popular, são espíritos irrequietos, muito movimentados, que pregam sustos mas não incomodam muito...

Agora vá o leitor a Algoso e lá que o levem à Fonte de S. João. Escolha a véspera do dia de S. João, ponha-se à coca. Sabe o que verá? Pois o mesmo que um rapaz dessa aldeia, que se apaixonou pela lenda. Pois à meia-noite, lá no abrigo em que se encontrava, viu uma enorme serpente que se dirigiu para a fonte. O ar estava que nem num sonho, vindo belos aromas de um roseiral ali perto. Pois a serpe mergulhou três vezes nas águas e transformou-se numa linda moura de cabelos dourados. Saltando para o chão de terra batida, a menina sentou-se na borda da fonte a cantar e a pentear-se. Apareceu então uma corça, procedente de uma mata próxima. A moura fez-lhe festas e o animal lambeu-lhe as babuchas. A moura depois inclinou-se para a fonte e chorou copiosamente. Então, o leitor, tal como o rapaz da lenda, ficará de boca aberta e fará um movimento qualquer, no qual se quebrará um ramo seco e o encanto, baixando uma névoa sobre a Fonte de S. João. Gostaram da perspectiva?
Bem, falta o leitor saber o porquê da ida à fonte. É que no tempo em que ainda havia mouros por Trás-os-Montes, na aldeia de Algoso, havia um mouro que tinha costela de bruxo. Sabia o passado e o futuro de toda a gente menos do seu próprio. De toda a parte iam lá consultá-lo. E de todas as classes. E assim foi juntando o seu tesouro.
Um dia, correu a notícia de que tropas cristãs se aproximavam de Algoso. O homem, que já ia entrado na idade, pegou no baú das suas jóias e andou em busca de sítio para o esconder. E andou, andou, andou, até chegar à Fonte de S. João de Algoso. Verificou que ninguém o estava a espiar e, logo por baixo da fonte, afastando os ramos de um chorão, aí meteu o seu tesouro. Mas quando acabou de o esconder, ergueu os olhos e deu com uma menina moura e julgou que ela o observava. Teria, na verdade, visto onde ele escondera o tesouro?
Pelo sim e pelo não, com um gesto mágico e uma oração secreta, lá fez desaparecer a moura. Pode ser que o leitor a conheça quando lá for...»

[Viale Moutinho, pg. 304]

A moura terá desaparecido, mas será que o tesouro ainda lá está ou minha Avó o trouxe para a Gafanha?

Manuel

Um artigo de Anselmo Borges, no DN


BABEL E PENTECOSTES:
A FAVOR DE UM MUNDO MESTIÇO




No Génesis, primeiro livro da Bíblia, narra-se o mito de Babel. Os homens disseram: "Vamos construir uma cidade e uma torre, cujo cimo atinja os céus. Assim havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra." O Senhor, porém, disse: "Vamos descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não consigam compreender-se uns aos outros." E o Senhor dispersou-os por toda a superfície da Terra.
Babel deriva do verbo balal, que significa "misturar", "confundir", e, por assonância, remete para Babilónia.
É um mito de uma actualidade dramática. Note-se que em capítulos anteriores do Génesis se fala do plano de Deus que quer que a humanidade cresça e se multiplique em "povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações". Assim, o que está em causa não é a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas. O mito da Torre de Babel põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de um povo sobre todos os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo.
Ironia das ironias, o mito alude à Babilónia, no actual Iraque, onde um novo imperialismo quer impor um desígnio de dominação.
Noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se, em contraponto, a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem."
Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados, diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!"
No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. A arrogância imperial de Babel anula a diferença. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar.
Na actual situação do mundo globalizado, mas em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar uma governança mundial, para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte, e, neste contexto, pensar também o multiculturalismo no horizonte da mestiçagem.
Afinal, todos somos mestiços. Se não há raças puras - algures houve cruzamentos -, a mestiçagem torna-se inegável, sobretudo no campo de uma sociedade nómada multicultural, de tal modo que a questão é a da identidade no quadro de pertenças múltiplas. Como salvaguardar, no contexto de identidades inevitavelmente compósitas, o equilíbrio tensional entre a universalidade e a singularidade, sem rupturas nem esquizofrenias, sem rigidez nem fixismo, sem trair as origens nem enregelar nelas?
Como escreveu João Maria André, a mestiçagem "não se pode confundir com qualquer tipo de hibridismo amorfo, sincretismo difuso ou relativismo total." Ela não é "mera justaposição de formas e figuras diferentes" nem "um labirinto axiológico" ou "mescla pura e simples de expressões culturais de diversas origens e proveniências". Mestiço é "um tecido, o que supõe criação, assimilação, elaboração a partir de fios ou materiais diferentes", mas um tecido nunca "plenamente conseguido", pois "está sempre em movimento".
A cultura da paz supõe a sinfonia das nações em contraponto, aberta à Transcendência e, assim, sempre incompleta.

sábado, 26 de maio de 2007

Ares da Primavera


MATA DA GAFANHA: UM OCEANO DE PAZ
:
Penso que nem muitos gafanhões têm o costume de passear pela Mata da Gafanha. Atravessam-na por aqui e por ali, rumo a Ílhavo ou às várias Gafanhas que existem e são irmãs da Gafanha da Nazaré, mas ficam-se por aí. Para apreciar esta mata, com mais de cem anos e nada e criada sobre dunas de um mar que já por ali andou, há muitos séculos, é preciso deixar as estradas que a cortam em várias direcções e cirandar por entre pinheiros. Mas é necessário cuidado, porque o amante da natureza pode perder-se.
O que posso garantir aos meus amigos é que na mata se respira uma paz impressionante. Nem carros a acelerar, nem gente aos berros, nem músicas altíssimas. Apenas a serenidade de um oceano que ainda se ouve ao longe, quem sabe se não é o mesmo onde se semearam pinheiros há um século. O mesmo que talvez sonhe com o Atlântico que o chama, ora de mansinho, ora mais irritado, quem sabe se não é assim de protesto por só plantarem, a seu lado, árvores de cimento.

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