Aquela coisa que em tempos era, com sobranceria, apelidada de coscuvilhice alcandorou-se a profissão. Há gente que vive de policiar a vida alheia. Há revistas só para isso, jornais que fingem fazer outras coisas mas só fazem isso, tempo de antena para isso.
No programa da manhã da SIC, uma ex-Miss Portugal e uma astróloga ou taróloga ou lá o que é, mais uns rapazes que para além daquilo não se sabe o que fazem, discutem com desembaraço vidas sortidas, explicando o que se pode e não se pode fazer, o que fica e o que não fica bem, e quais as "obrigações" das "figuras públicas". Na TVI, um grupo de senhoras que parecem ter sido escolhidas por não se saber quem são e o que fazem discorrem com igual alegria sobre os mesmos assuntos.
E os assuntos são, invariavelmente, quem anda e não anda com quem, quem está feliz e quem está infeliz, quem assume a relação e quem não assume a relação. Para este universo, o "assumir da relação" é uma espécie de climax. Para a indústria chamada "do coração", que vive de vigiar as "relações", existentes ou a existir, entre os que apelida de "famosos", as assunções plenas e fotografadas olhos nos olhos e mão na mão junto à lareira/piscina, com declarações mútuas de dedicação para além da morte e de paixão e felicidade sem limites, são uma exigência. Tudo o que não se pareça com isso é clandestino, suspeito, talvez até ilegal.
"As pessoas têm o direito de saber", ouve-se nas rodas de comadres das TV e repete-se em publicações consideradas de "informação geral", em nome, imagine-se, da "democracia". Este "direito de saber" inclui as fotos à traição e à força, "revelações" sobre quem dançou com quem , quem beijou quem, quem fez topless. As regras são simples: é fora de casa, é público; é público, é publicável; quem se mostra uma vez legitima todas as intrusões; quem não se mostra está a esconder algo, logo, legitima todas as intrusões. A indústria tem sempre razão.
Contra isto, nenhum argumento é aceite, nenhuma lei eficaz. Proteste-se ou processe-se e é-se acusado de "falta de transparência", "censura", ou, mais uma vez, "ter algo a esconder". Para esta nova polícia de costumes, preservar é sonegar, recusar "esclarecimentos" é crime. Em poucos anos, aqueles que decorreram desde o triunfo desta inquisição, o que era considerado o cúmulo da vulgaridade - a exposição da intimidade -, passou a norma. Na relação entre o direito à reserva da vida privada, garantido pela Constituição, e o "direito" à intrusão, proclamado pela confederação dos alcoviteiros, ganhou o que vende mais. Perdeu a liberdade, claro. E essa coisa chamada amor. Mas isso, assuma-se, nunca interessou a ninguém.