Crónica de Anselmo Borges
no Diário de Notícias
É preciso ver o invisível e vê-lo precisamente no visível. É necessário voltar à terra e ver aí e daí os sinais que Deus nos faz: no céu estrelado, na rosa que dá perfume sem porquê, como escreveu Angelus Silesius, sobretudo no sorriso de uma criança e na visita de qualquer rosto de homem ou mulher e seja qual for a sua origem ou cor...
Mas não basta aprender a ver. É necessário igualmente saber ouvir. Não será por isso que a arte, cujo referente é o invisível no visível, tem as suas supremas expressões na pintura, na escultura e na música? A grande música está aí essencialmente para dizer o indizível, dando-lhe voz...
Entre os primeiros sons que teremos ouvido, está o do bater do coração da nossa mãe. Por isso é que há aquele brinquedo simples, dos japoneses, segundo creio, cuja única façanha é imitar o bater do coração humano. Quando o bebé chora, ao ouvir o bater desse brinquedo, que lhe recorda o coração materno, deixa de chorar, tranquiliza-se. Depois, deram-nos um nome, e, ainda hoje, ouvindo o nosso nome, sabemos que é a nós que chamam. Aprendemos a falar, ouvindo e imitando outros humanos que proferiam sons articulados...
No século XVIII, dizia-se que, se um macaco falasse, estariam dispostos a baptizá-lo: de facto, é pela linguagem que o Homem verdadeiramente é humano. Mas não é suficiente falar. É ouvindo-nos mutuamente que tomamos consciência da nossa igualdade radical enquanto seres humanos. Não há, não pode haver de um lado aqueles que falam e do outro aqueles que apenas ouvem. Portanto, os estudantes devem ouvir os professores, mas os professores também têm que ouvir os estudantes. Que os cristãos ouçam o papa, os bispos, os padres, mas que o papa, os bispos, os padres ouçam também os outros cristãos, que não podem ficar reduzidos à passividade… Os empregados ouvirão os encarregados e patrões, mas estes deverão igualmente ouvir os operários, pois têm algo a dizer e eventualmente direitos legítimos a reclamar. Onde é que estaria a democracia, se os governantes não escutassem os outros cidadãos?
O bebé reencontra a tranquilidade, recordando o bater do coração materno. Todo o ser humano precisa de ouvir palavras de afecto. Mas hoje quem lhas dirige? Todo o ser humano tem necessidade de desabafar, mas quem está disposto a ouvir os velhos, os doentes, os moribundos? E não encontramos pessoas a falar sozinhas nas ruas?
Afinal, a vida familiar não se afunda frequentemente, porque o marido não tem tempo ou disposição para ouvir a mulher e a mulher ouvir o marido? E não será também porque os pais não escutam os filhos nas suas histórias, nas suas perguntas, nos seus anseios, que os jovens seguem por caminhos que levam ao abismo? Ah! Todos a dedar nos smartphones… E quem fala? Quem ouve?
Precisamos de aprender a ouvir o marulho do mar naquele seu desdobrar-se imemorial, e o bater de asas dos pássaros, e o leve murmúrio das folhas das ervas e das árvores tocadas pela brisa... Precisamos de aprender a ouvir música, a grande música, para reencontrar a paz e a voz do essencial indizível.
Se tivéssemos tempo para nos sentarmos e meditar e escutar o silêncio e a voz da consciência, teríamos evitado tantos erros e disparates e tragédias!... Anda por aí um barulho ensurdecedor, mas quem ouve o silêncio no qual se acendem as palavras da sabedoria?
E se um dia nos dispuséssemos também a ouvir o Divino, que permanentemente se nos dirige?... E a pergunta pelo sentido da vida?
Anselmo Borges no DN