Donde vem o “eu”
É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer “eu”. Só cada um, cada uma, o pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer “eu” na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro, outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo e sempre um eu outro - é irredutível.
É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela, me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa, quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um “embrulhinho” (perdoe-se a expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o Kico, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?
Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim. Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo.
Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no nada.
Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu? Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.
Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim, aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é, enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o mistério do Deus criador.
É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada, nem para ninguém, que se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián Marías: “A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. - ‘deriva’ da dos pais, e neste sentido é ‘redutível’ a ela. Mas o filho que é e diz ‘eu’ é absolutamente irredutível ao eu do pai, bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro, entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que ‘vem’ deles, pois eu não posso vir de outro eu, já que este é um ‘tu’ irredutível.
Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa -, enquanto tal, é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de uma realidade nova e intrinsecamente irredutível”.
Anselmo Borges no Diário de Notícias
Escreve de acordo com a antiga ortografia