Concretamente nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá paz entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de repetir o teólogo Hans Kung: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial.”
O diálogo inter-religioso é mais do que simples tolerância religiosa, pois é exigência do próprio Absoluto a que todas as religiões estão referidas. Precisamos de todas as religiões para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase muda, o Mistério que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste sentido, o místico diria: Deus é “nada” de todas as religiões. Mestre Eckhart pedia a Deus que o libertasse de “Deus”, isto é, dos seus conceitos, imagens e representações de Deus.
Deste diálogo fazem parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus que sabem o que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode colocar, tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da superstição, da idolatria e da desumanidade que as religiões muitas vezes transportaram e transportam consigo.
Quando se pensa na coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia religiosa confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no cadafalso e da “certeza” do inferno, ousar, em nome da dignidade humana, do respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar contra a superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico, surge-nos do mais íntimo e fundo de nós o sentimento de veneração e de reconhecimento de “santidade” em relação a muitos daqueles que, a maior parte das vezes em sentido pejorativo, ficaram na história como críticos da religião e até ateus. Esses não são santos de nenhuma igreja, mas são com certeza “santos” da Humanidade.
Impressiona que hoje o cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação - estou convicto de que é a maior na história da Humanidade -, para muitos já não exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é a verdade do finito, grande número de homens e mulheres se mantenham indiferentes ou até O recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões explicativas desta indiferença e recusa. Uma delas, que não será a menor, prende-se com a imagem de Deus transmitida pelos crentes. Muitas vezes o Deus que aparece é um Deus menor, triste, invejoso, impeditivo da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o amor, a alegria e a criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida propriamente dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro, autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a tentação de “matar Deus com medo que Deus me mate a mim”.
Hoje, a questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a acontecer nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de hiperactividade, num tempo descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul Han no seu recente livro Vita Contemplativa referindo-se a esta sociedade: “A actual crise religiosa não se pode simplesmente atribuir ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou determinadas crenças terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais profundo, esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta a permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial. Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a alma já não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua hiperactividade que se deve a perda da experiência religiosa. A crise religiosa é uma crise de atenção.”
Espíritos eminentes preveniram para os perigos, sendo urgente preparar-se para o pior. Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que caminhe para a catástrofe. Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -, perguntava: “O que aconteceria se a simples palavra ‘Deus’ deixasse de existir?” E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu.” Neste domínio, o perigo maior provém de a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a Humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e “abdica da sua procura de sentido”.
Anselmo Borges,
no Diário de Notícias
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.